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sábado, 31 de janeiro de 2015

A MORTALHA


Quadro: IVAN MARCHUK



Ela pediu-me a roupa, há dias.

Com aqueles olhos sérios, eivados de compaixão e sentido de dever, escolheu as palavras com cuidado.  Mas ela sabe que sou frontal, que prefiro sempre encarar as coisas de frente, que gosto de prevenir.



-       Como a doutora viaja bastante, tem todas essas reuniões fora, eu…precisava de saber onde está a roupa.

-       Mas eu mostrei-lhe o roupeiro, as gavetas de cada peça, quando começou a trabalhar cá em casa.

-       Sim, doutora, mas não é essa. É a outra…para quando…acontecer aquela hora…infelizmente. A senhora pode não estar nesse momento, será melhor eu estar preparada.

-       Hei-de estar, hei-de estar por cá!. Mas, sim, um dia destes eu arranjo a roupa para a pormos de parte.



A roupa, a mortalha.  A mortalha dele, para revestir os seus restos mortais, chegou a hora em que tal me é pedido.

(Qualquer coisa a afundar-se em mim, respiração suspensa, soluços estrangulados.)

Calo isto, a ver se encontro coragem, interiormente,  de pegar no assunto de alguma maneira.

Racionalizo. Os melhores fatos dele, de quando percorria o mundo durante a vida activa, estão na casa da cidade aonde hoje em dia só vou de fugida por causa da doença dele.

E na casa da cidade, conheço o medo. Medo de percorrer os escassos metros até ao roupeiro dele. Como é que vou ser capaz? Prever, prevenir, escolher a sua última roupagem, quando continua vivo e ninguém sabe quando será o fim…
Adio o momento.  Hoje estou cansada, ainda debilitada do longo periodo de gripe, tenho outras coisas mais urgentes para fazer, já estou atrasada para a reunião das quatro, etc, tudo pretextos para me evadir desse confronto.

Mais tarde, obrigo-me a ir até lá. Abro devagarinho as portas brancas de friso dourado, acende-se a luz interior do roupeiro e olho demoradamente a coleçção dos fatos, arrumados com método como sempre foi próprio dele.
Sobrepõem-se  muitas imagens, ocasiões diferentes em que pelo mundo, em cumplicidade, ganhámos a vida juntos, abrimos caminhos profissionais, descobrimos coisas novas.

Se alguém lhe perguntasse, como é que ele gostaria de estar vestido nessa hora para além do fim na matéria, quando a sua alma já tiver tomado o caminho de regresso ao Esplendor, qual seria a sua escolha?

Ninguém lhe perguntará, mas estou certa que quereria apresentar-se na sua faceta dominante de gentleman britânico que foi aqui na Terra, fato e camisa de cortes irrepreensíveis, gravata excêntrica, lenço de bolso vermelho.

Trémula, opto por um fato azul escuro de lista branca que sempre lhe ficou bem. Silenciosa e estranha ao meu próprio gesto, retiro-o do roupeiro e coloco um lencinho de seda vermelha no bolso do peito. Ele gosta assim. Ele quereria assim. Caso aceitasse o inevitável, a passagem desse portal que terá de transpor, mais dia, menos dia.

(Caiem muitas coisas dentro de mim, estrondos silenciosos com os quais não sei ainda lidar. Sinto-me esvaziada de qualquer coisa indefinível.)

Pronto, já tenho a mortalha! Mas não a entregarei à assistente de noite dele, como me foi pedido.

Ficará no meu roupeiro, como se não fosse o que virá a ser, como se o calor, o afecto do meu coração pudessem permitir ainda, por mais algum tempo, qualquer coisa menos fria, menos mortalha.

A vela ainda não se apagou.







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