Quadro: IVAN MARCHUK |
Ela
pediu-me a roupa, há dias.
Com
aqueles olhos sérios, eivados de compaixão e sentido de dever, escolheu as
palavras com cuidado. Mas ela sabe que
sou frontal, que prefiro sempre encarar as coisas de frente, que gosto de
prevenir.
-
Como a doutora viaja bastante,
tem todas essas reuniões fora, eu…precisava de saber onde está a roupa.
-
Mas eu mostrei-lhe o roupeiro,
as gavetas de cada peça, quando começou a trabalhar cá em casa.
-
Sim, doutora, mas não é essa. É
a outra…para quando…acontecer aquela hora…infelizmente. A senhora pode não
estar nesse momento, será melhor eu estar preparada.
-
Hei-de estar, hei-de estar por cá!.
Mas, sim, um dia destes eu arranjo a roupa para a pormos de parte.
A
roupa, a mortalha. A mortalha dele, para
revestir os seus restos mortais, chegou a hora em que tal me é pedido.
(Qualquer
coisa a afundar-se em mim, respiração suspensa, soluços estrangulados.)
Calo
isto, a ver se encontro coragem, interiormente,
de pegar no assunto de alguma maneira.
Racionalizo.
Os melhores fatos dele, de quando percorria o mundo durante a vida activa,
estão na casa da cidade aonde hoje em dia só vou de fugida por causa da doença
dele.
E
na casa da cidade, conheço o medo. Medo de percorrer os escassos metros até ao
roupeiro dele. Como é que vou ser capaz? Prever, prevenir, escolher a sua
última roupagem, quando continua vivo e ninguém sabe quando será o fim…
Adio o momento. Hoje estou cansada, ainda debilitada do longo periodo de gripe, tenho outras coisas mais urgentes para fazer, já estou atrasada para a reunião das quatro, etc, tudo pretextos para me evadir desse confronto.
Adio o momento. Hoje estou cansada, ainda debilitada do longo periodo de gripe, tenho outras coisas mais urgentes para fazer, já estou atrasada para a reunião das quatro, etc, tudo pretextos para me evadir desse confronto.
Mais
tarde, obrigo-me a ir até lá. Abro devagarinho as portas brancas de friso
dourado, acende-se a luz interior do roupeiro e olho demoradamente a coleçção
dos fatos, arrumados com método como sempre foi próprio dele.
Sobrepõem-se muitas imagens, ocasiões diferentes em que pelo mundo, em cumplicidade, ganhámos a vida juntos, abrimos caminhos profissionais, descobrimos coisas novas.
Sobrepõem-se muitas imagens, ocasiões diferentes em que pelo mundo, em cumplicidade, ganhámos a vida juntos, abrimos caminhos profissionais, descobrimos coisas novas.
Se
alguém lhe perguntasse, como é que ele gostaria de estar vestido nessa hora
para além do fim na matéria, quando a sua alma já tiver tomado o caminho de
regresso ao Esplendor, qual seria a sua escolha?
Ninguém
lhe perguntará, mas estou certa que quereria apresentar-se na sua faceta
dominante de gentleman britânico que
foi aqui na Terra, fato e camisa de cortes irrepreensíveis, gravata excêntrica,
lenço de bolso vermelho.
Trémula,
opto por um fato azul escuro de lista branca que sempre lhe ficou bem.
Silenciosa e estranha ao meu próprio gesto, retiro-o do roupeiro e coloco um
lencinho de seda vermelha no bolso do peito. Ele gosta assim. Ele quereria
assim. Caso aceitasse o inevitável, a passagem desse portal que terá de
transpor, mais dia, menos dia.
(Caiem
muitas coisas dentro de mim, estrondos silenciosos com os quais não sei ainda
lidar. Sinto-me esvaziada de qualquer coisa indefinível.)
Pronto,
já tenho a mortalha! Mas não a entregarei à assistente de noite dele, como me
foi pedido.
Ficará
no meu roupeiro, como se não fosse o que virá a ser, como se o calor, o afecto
do meu coração pudessem permitir ainda, por mais algum tempo, qualquer coisa
menos fria, menos mortalha.
A
vela ainda não se apagou.
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