Reencontrámo-nos ontem,
no final da tarde, num cantinho da FNAC em Évora. A Ana Ferreira Martins e eu.
Os
livros têm sido o pretexto para os nossos encontros, mas percebi ontem que há
caminhos que têm inevitavelmente que se cruzar, pela afinidade das motivações.
Tocou-me
a importância que a Ana deu à minha presença porque tem a ver com a intimidade
e o reconhecimento instantâneos que ocorrem entre certas almas.
A
Ana escolheu, durante a sua vida, lançar um olhar atento e empenhado sobre os
excluídos e deixa-nos agora este estudo sobre a mulher sem acesso ao privilégio
elementar e básico que é ter um cantinho com tecto a que chame o seu lar, na
nossa cidade de Lisboa.
Uns
meros 30m2, com uma kitchenete, um WC, uma cama confortável, mesa e cadeira,
q.b. como primeiro socorro. Mas não acontece ainda, na nossa sociedade, onde o
número de mulheres excluídas socialmente aumenta, actual e dramaticamente entre
as mais jovens.
O
fenómeno, de abordagem muito complexa e difícil, tem origem na ordem de valores
estabelecida que, para manter vivo um sistema obsoleto de privilégios dos
poucos, faz vista grossa sobre o flagelo da pobreza e da exclusão social e os problemas que o mesmo acarreta. Com toda a
admiração e respeito que nos deve merecer o trabalho das várias instituições e
indivíduos empenhados no alívio do sofrimento físico e psicológico das sem
abrigo, o facto é que só o poder político pode viabilizar os instrumentos
sociais indispensáveis ao tratamento eficaz deste fenómeno. Algo que continua a
não acontecer nas nossas sociedades.
Maria,
Sem Abrigo, 29 anos: “É assim, eu nunca votei em ninguém. As pessoas que votam,
é bom, vai lutar por uma pessoa que vai lutar pelo país, mas o único meu voto
que eu faço a toda a hora, a cada instante, é em DEUS...para mim não tem
significado nenhum, porque é assim, eles é que ganham!...”
Eles
é que ganham. E Deus parece ocupado
demais para intervir.
A Ana falou de como é difícil caminhar socialmente quando se é pobre. Um
cansaço brutal, tudo tão difícil, conducente à desistência.
Lembro
o olhar da Ana, um olhar matizado pelo muito e doloroso que já viu durante a
sua vida de assistente social, no caminho percorrido com coragem. O olhar da
Ana entra no meu coração e nutre a esperança.
As palavras da Ana dão rosto à invisibilidade das mais frágeis entre nós, das
esquecidas, fustigadas pela pobreza e miséria a todos os níveis. As que se
escondem, as que não podem apoiar os seus filhos como desejariam, as que se
prostituem por tuta e meia para sobreviver com precariedade, as que levam
pancada a torto e a direito.
E permite ainda a expansão do conceito da sem abrigo, extensivo a toda a mulher
que, esmagada pelo sistema patriarcal,
não sai da casa onde habita com o companheiro, por não ter para onde ir,
à excepção da rua.
As
palavras, o trabalho e o olhar da Ana são agitadores de consciência.
Lembram-nos o muito que há a fazer, não só no plano da realidade imediatamente
tangível, como também e sobretudo num trabalho diário de expansão da
consciência do que é a mulher integral, uma vez resgatado o seu poder pessoal
há muito aprisionado nos liames traiçoeiros de um paradigma de valores injustos
e inadequados à verdadeira evolução da humanidade terrestre.
Um Viva à Ana, nossa irmã!
Mariana
Inverno, Notas à Sombra dos Tempos (II)