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terça-feira, 31 de maio de 2011

SELF DE DIMENSÃO HUMANA


Tenho andado a pensar, de forma concentrada, nos diferentes "eus" que cada ser abriga. Aquilo a que os junguianos chamam o “self”.
Assumimos diferentes eus perante diferentes pessoas. Todos, sem excepção, passamos em maior ou menor grau por essa experiência de falseamento e tentamos manter um laço saudável entre os diferentes eus, numa ilusão de coerência e sentido de propósito pessoal. Contudo, quando este laço eventualmente se rompe, o eu que habitualmente apresentamos ao mundo, acaba em geral por se apresentar como falso.

Não se pode ser tudo, nem em tudo ser grandioso. Há que optar pelo nosso “self” mais verídico, mais forte e mais profundo, aquele que com maior acuidade possa corresponder na manifestação ao projecto da nossa alma. Só se lá chega com muito esforço e empenho, intenção sincera de humildade e uma certeira busca de verdade.
No cerne deste fenómeno dos múltiplos eus habita uma procura inconsciente da aprovação que o ser humano busca, de forma acentuada, junto dos grupos com que mais se identifica – aqueles que ama e aqueles que teme. A identificação com o agressor (psicológico, emocional ou físico) é uma ocorrência do foro inconsciente, em geral mascarada da aparência de amor, admiração ou até mesmo, para os mais intelectualizados, da necessidade de viver uma experiência diferente. Nos místicos, assiste-se por vezes, neste caso, à colagem ao conceito de karma que justifica interna e externamente a junção ao agressor.

 Para um crescimento saudável – identificação e o assumir do eu mais genuino em nós – torna-se imperativo trazer este enredo à consciência e abdicar da necessidade de aprovação sempre que a mesma se faça à custa do sacrifício desse eu central. Este crescimento prende-se com uma renúncia profunda: a da dissociação, ou seja a da integração do bem e do mal.
Para isso há que desistir das simplificações – nada se escreve só a preto e branco – e aprender a viver com a ambivalência e as ambiguidades da vida real.
As percepções redutoras da vida remetem o ser humano para um perigoso infantilismo de mimetização camaleónica dos sinais exteriores com que julga identificar-se e levam-no a modelar o seu comportamento de acordo com os mesmos. Embora este eu possa apresentar-se muito convincente nos mais hábeis, numa leitura mais profunda ele apresenta a ausência de um estável amor próprio interno ao concentrar-se de forma egóica sobre si mesmo.


Em síntese: para um almejado equilíbrio, torna-se desejável ver mais fundo, compreender que secretos mecanismos, que carências, terrores e paixões nos manipulam a partir do inconsciente, o qual exerce um poder não controlado sobre os acontecimentos que atraímos para nós.
O sinal de que esse trabalho vem a ser feito pode ler-se na nossa renúncia progressiva à grandeza e na aceitação de um eu de dimensão humana.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

O ABRAÇO


Hoje precisei de um abraço.

Um abraço longo, apertado, íntimo, um abraço que me confirmasse que estou viva, que alguém ainda consegue vislumbrar esse núcleo de cristal fechado a sete chaves que receio perder, quebrar, adulterar se o expuser mais...
Precisei de um abraço vindo de outra alma, daqueles que se estendem para além dos limites do físico, e alongam etéricos dedos luminosos de amor e compaixão sobre a nossa miséria. Um abraço sem palavras, sem compromissos, sem desculpas, despido de intenções, perfumado do sentir magno que cabe num soluço.  

Pedi, roguei, chorei por esse abraço mas ele não chegava. Passavam gentes, vozes, telefonemas, mas ele não chegava. Falei com a terra, chorei outra vez. No céu rimbombava a trovoada e escurecia tudo ao meu redor.

Pensei na minha vida, nos passos que ficaram para trás e naqueles que hoje consigo dar. No que valeu ou não valeu a pena, o que soube e o que não soube fazer. A vida, a morte, a dor de nos encontrarmos um dia com estranhos no lugar dos seres em quem confiámos.

O abraço chegou, por fim. De forma virtual, mas sincero e cálido, reconfortante como os braços da Mãe.
Grata, partilho isto convosco, pois foi este o retorno que me coube.

domingo, 29 de maio de 2011

EM NOME DO AMOR

A capacidade individual de imaginação leva-nos frequentemente a  todo o tipo de transferências, ao criarmos e alimentarmos laços fantasiados de fusão, seja com essa primeira e insubstituível figura que é a mãe, seja com os objectos de amor que vamos identificando pela vida fora. A  privação  afectiva conduz, de facto,  a todo o tipo de projecções e  identificações enganosas. Estas últimas ocorrem mais frequentemente no ser propenso ao auto-engano, em geral aquele que, por ser incapaz de se enfrentar verdadeiramente nos seus aspectos mais sombrios, encontra evasão, alívio e uma passageira auto-confirmação de bem-estar e de felicidade, na eternamente renovada (e actualizada) versão do que lhe "acontece” ou “vai acontecendo”no processo a que me habituei a chamar turismo emocional. 
A palavra amor tem vindo a perder o sentido, pela banalização do seu uso. Chama-se amor a toda e qualquer excitação, por mais passageira e fútil que ela seja, ou meramente baseada numa atracção física. São também erroneamente identificadas como amor as projecções que não passam de meros processos de gratificação de um ego descompensado,  eternamente em busca de “contrapesos” para as suas frustrações ou para justificar o script que a persona alienada inventa e acarinha para a sua própria sobrevivência. 
Num tempo em que tanto se fala de amor mas em que os exemplos de vivências de amor genuino e amadurecido são raros, parece-me que estamos de volta à estaca zero em termos de evolução nesta matéria.  Somos em geral seres decompensados, pouco ou nada conscientes do que em nós transportamos e, como tal, ao prosseguirmos as histórias imediatas (as que estão ao alcance da mão), deixamos com frequência escapar a Verdadeira Vida.  Seja por ignorarmos ou relegarmos para lugar secundário os nossos mais importantes e já encontrados parceiros de rota na Terra, seja pela nossa incapacidade de nos preservarmos para esse encontro.
Tudo isto advém da falta de amor-próprio e da não integração do que é essa energia que permite, com o outro, tocar a transcendência. A experiência de amar, para ser verdadeira, não exige formatos ou compromissos.
Ela É em si mesma o compromisso e adapta-se naturalmente às circunstâncias da vida. Com a inocente alegria da dádiva e sem a ultrajante contabilidade hoje em dia demasiado presente nas “histórias de amor”. 

sábado, 28 de maio de 2011

A HISTÓRIA DE BLANCA DESISTENTE

Sentia vontade de chorar e chorou mesmo, mas não ficou aliviada.
Buscava a palavra essencial, aquela que emergisse depois de tudo se aquietar, após limpar o lixo, calar a estereofonia, sentir-se só, em casa, finalmente nos braços do Silêncio. A palavra capaz de sobreviver à dor finíssima e imperceptível que lhe atravessava o coração como uma lâmina estreita e longa, fria como um iceberg.
Lá fora, nos jardins, cães ladravam furiosamente, numa reclamação magna e sem sentido. Sem sentido parecia aliás tudo, hoje em dia, pois em vez da aguardada palavra de ouro, aflorava apenas um sentido de desolação, muito pouco que lhe restasse em que acreditar.
Ser-lhe-ia fácil contar-se uma outra história se fosse menos rigorosa, mais dada ao auto-engano. Mas se Blanca sentia assim as coisas, as historietas de outrora – as boas, as que têm final feliz, aquelas em que as coisas se resolvem e tudo acaba em luz e em elevação – tinham deixado de fazer  sentido. Só podia ajuizar pela sua própria vida, pela límpida intenção que lhe crivara a ponto cruz  a alma de sonhos e esboços de voos e o contraste dos desfechos, uns após outros. Os dos sonhos mais íntimos e preciosos, o desaparecimento da crença nos outros que era (quase) o fim da confiança na vida.
Quase, tudo tinha sido sempre quase, mas... não, finalmente. E era isso o que mais lhe custava, pois a dimensão da sua interioridade extravasava-a, num auto-sufoco assassino da vida que lhe restava.
Pensava Blanca em desistir. Podia ficar ou partir, mas o cheiro a desistência empestava-lhe os dias e tisnava de lonjura e vazio os seus grandes olhos que, tudo vendo, já nada viam como antes. Ela sabia que o encanto se perdera, já não acreditava mais que alguém sentisse por ela alguma coisa do que realmente conta, pois também ela deixara de sentir fosse o que fosse. Achava agora que não passara de um ser utilitário para os outros, às vezes uma espécie de milagreira, e que muita ficção tinha corrido à conta disso. Mas mais nada.
Quando chorava – e fazia-o muitas vezes – não chorava por ninguém nem por nada. Descomprimia um pouco e ficava-se depois no eco de alguma coisa que tinha estado para ser mas não fora, alguma coisa já sem rosto, que dela havia descolado num voo sem retorno.
Até Mahler, cuja música sempre a havia inspirado, lhe parecia excessivo agora.
Não faz sentido tanta dor, não é preciso viver se o que nos rodeia é a anti-vida - ecos, ecos e só ecos das  mentiras que tomámos como grandes verdades.
Decidiu ir-se. De uma forma muito feminina. Tomou-os muito rapidamente e esgueirou-se como uma nota final, em fuga.
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Eu soube da história de Blanca porque acompanhei amigos comuns ao funeral. E o que neles detectei parece desmentir em absoluto o que levou aquela doce mulher a antecipar o fim da sua residência na Terra. Ou talvez seja a minha imaginação  criadora a tentar dourar a pílula.
O facto é que se pudesse, mesmo sem a conhecer, teria a tempo abraçado Blanca com toda a minha alma e amado com todas as minhas forças, para que os seus grandes olhos rasos de água voltassem a sorrir.
Sendo as coisas como são, deixo aqui o meu testemunho para que nele se pondere.  

MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos

SOMBRAS COMPANHEIRAS

A “obra” de cada um pede um espaço próprio, interior e exterior e, não
raras vezes, ela é afectada, quando não mesmo obstaculizada, pela ruidosa turbulência das ligações amorosas. Estas são, mais vulgarmente do que se possa pensar, danças de egos, jogos de interesses, padrões kármicos incompreendidos e que se repetem por consequência ad nauseam. Representam em suma a indesejável distracção do trabalho interior a que nenhum ser se pode evadir se quiser avançar.

Parece-me que, antes de haver uma real disponibilidade para um relacionamento íntimo do tipo amoroso, os seres precisam de se encontrar a si mesmos, curar feridas encarnacionais e perceber que é dentro deles que se encontram todos os recursos necessários ao cumprimento pessoal.

O outro, se encontrado e vivido em circunstâncias saudáveis do ponto de vista emocional, espiritual e físico, o outro é a doce luz acompanhante da nossa rota, é do nosso jardim interior o manifestado perfume.

À REVELIA DA SIMPLICIDADE

 


"O nosso verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós próprios."                              MARGUERITE YOURCENAR

Tenho estado todo o dia a pensar no que a Marguerite Yourcenar escreveu sobre o momento em que verdadeiramente nascemos. Corresponde, creio,  a um corajoso estádio de lucidez sobre nós mesmos, a tal capacidade de olhar a miséria própria, sem disfarces, desculpas ou artificiosas explicações. Muito difícil, pois nada nos prepara para tal.
As pessoas, em geral, nada sabem sobre si mesmas, atrevo-me a dizer. Construíram um guião ao longo da vida, nutrido pelo que o meio ambiente lhes foi fornecendo como estímulo ou freio, e na dança e contradança da construção de um “Eu” viável, passando pela sobrevivência e por toda a mentira social, lá vai o ego saltitando de história em história, de causa em causa, em total ignorância do que realmente se passa nos bastidores (os próprios e os do entorno).
Confrange-me sempre o mau uso da palavra “simplicidade”. Eu sou um rapaz simples, eu gosto de frases simples, a mim chega-me uma vida simples, quero em toda a simplicidade ajudar os outros, representam em geral mecanismos de defesa face à própria auto-ignorância e dos caminhos do mundo em geral. Se formos simples, nada demais nos será exigido, podemos escudar-nos na nossa “simplicidade”. Mas a grande prova chega quando em vez da simplificação que apenas ilude, conseguimos encontrar a coragem e a pontinha de sabedoria indispensáveis para olhar de frente e a fundo o que reside por detrás dessa parede amarelinha e clara que é a fachada que mostramos ao mundo. À revelia dela vivem traumas, inseguranças, obsessões, carências, medos, sonhos desfeitos, dores de toda a ordem que nos habituámos a guardar num armário secreto longe da vista alheia, sobretudo longe da nossa.
Assim, tal como diz a Yourcenar, não me parece que tenhamos realmente aportado à verdadeira existência antes de sermos capazes de lançar sobre nós mesmos um olhar informado, prescrutante, laseriano, objectivo e tanto quanto possível isento na sua análise do que nos move lá das profundezas, que lixo deixámos para trás, que negações ou falsas verdades nos auto-impusemos para ir cumprindo o guião.
Ninguém é inocente! Estamos todos envolvidos numa trama mais ou menos complexa e as ”pessoas simples” e as “vidas simples” são parte da fábula que nos contamos. Para distrair da verdadeira problemática:o trabalho não feito. Esse facto é por sobremaneira evidente em quem se arvora em condutor/curador/reformador da humanidade, uma espécie em franco desenvolvimento na actualidade. A pessoa relativamente estruturada empresta equilíbrio aos outros, sem nada ter de apregoar ou defender. É que a sua própria vida reflecte indiscutivelmente esse facto, tenha ela o formato que tiver.
Ninguém é inocente, eu também o não sou. Passei muitas dores e atropeços para chegar a este ponto e, ao escrever estas palavras, mil imagens de falseamentos e ilusões me assaltam a mente e me doem no coração.
Escrevo à revelia do que não quero parecer que sou sem o ser. Apenas alguém que trabalha para tentar dar nascimento apropriado a si mesma.

A PALAVRA E OS CENÁRIOS DE PAPEL


Vejo ter aumentado consideravelmente nos nossos tempos a onda de gente que crê (ou pretende fazer crer aos outros) que, através de visualizações e frases afirmativas do “lado positivo da vida” e de um febril optimismo a raiar o desequilíbrio, tudo andará pelo melhor e os problemas desaparecerão, como por encanto. Trata-se, provavelmente de impulsos compensatórios, máscaras de optimismo e de acção criativa às quais faltam naturalmente sustentáculo nas profundezas do ser. Daí a inconstância de objectivos, a mobilidade dos interesses e afectos e as súbitas mudanças de rota a que, oportunamente, se chama “viver o momento”. Santa inocência! 
A palavra que não está assente na vivência pessoal ou que representa uma forçada interpretação da mesma, esboroa-se e não atinge verdadeiramente o coração do outro. Fica ao nível do cenário e todos os cenários acabam por cair.
Vivemos num tempo de depuração máxima e a palavra é um instrumento de alto poder. Por esse motivo, ela deve ter neste tempo excepcional um papel único de chamamento à realidade (holística) de cada um e de todos. Em vez de cenários róseos e do papaguear das conclusões de alegados grandes mestres, a palavra deve servir para o incitamento à coragem da auto-revelação, para a expressão da alma que frequentemente, a gritos, procura ser ouvida.
Os sinais de tal apelo são, como sempre foram, reconhecíveis nas inexplicáveis angústias que nos assaltam, nas sincronicidades da vida, nos padrões circunstanciais que “aterram” na nossa existência, na nossa saúde e portanto nas enfermidades do corpo, nos sonhos – plataforma interpretativa e complementar da experiência consciente -, nos passos atrás e nos difíceis e muitas vezes repetitivos bloqueios ao caminho planeado. São as chaves para o descobrimento pessoal, para os mistérios selados na nossa interioridade e para o enfrentamento dos quais não fomos devidamente preparados.  
Acredito que partilhar, na medida possível, esta viagem, pressupõe humildade e entrega. Passar para palavras, sem efeitos especiais, o encontro consigo mesmo, poderá representar uma contribuição infinitamente mais duradoura para o avanço comum, do que mil frases, perfeitas e visionárias, que não saíram de nós. 
Levantar os véus que se interpõem entre nós e o que verdadeiramente somos, é um grande desafio. Passar para palavras essa nossa experiência constitui um repto de proporções gigantescas, pois apenas em linha directa com a alma o podemos fazer. 
Só a palavra que vem de dentro, funda e ressonante, exercício da Verdade, ecoa pelos espaços recônditos da Consciência.