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sábado, 21 de março de 2020

FIORI DELLO STESSO GIARDINO


 
      "La Terra é un solo paese. Siamo onde dello stesso mare.                                                        Foglie dello stesso albero. Fiori dello stesso giardino"[1]

Mírzá Husayn-'Alí (1817-1892)


Falámos tantas vezes disto, tu e eu, e mais tu e eu. Que se sentia no ar, que havia algo para vir, que algo teria de acontecer, pois os caminhos da vida estavam cada vez mais conspurcados pela ausência do coração.

Perguntámo-nos frequentemente como é que o paradigma central se iria transmutar, quais seriam os passos, as alterações, de onde emergiriam as iniciativas, as medidas indispensáveis para que o colectivo se viesse de novo a lembrar que “somos todos flores do mesmo jardim” e que, no fundo, todos queremos o mesmo: ser mais felizes, mais livres, viver melhor e mais adequadamente neste belo e rico planeta onde residimos de forma temporária. Mas o mundo continuou na sua farsa, numa espécie de commedia dell’arte adaptada a cada cenário político, economicista ou falsamente artístico.
A gente da minha geração refugiou-se cada vez mais num desespero ante a falta de ambição espiritual, de causas nobres, ante a ignorância cultural e o desrespeito pelos mais velhos. Muitos já haviam desistido de tudo, vivendo apenas para aquilo que o momento permitia, incluindo os amados jovens, aqueles que são o futuro da humanidade no planeta. Cresceu o fosso abismal entre ricos e pobres, subiram ao pódio do poder, nos vários continentes, figuras boschianas que nos foram deixando atónitos pelas suas políticas cada vez mais ancoradas no interesse próprio e no ganho pelo ganho, sem olhar a meios.

Sem pré-aviso, ele chegou. Coroado e tudo, a espalhar-se à velocidade da luz, sem olhar a quem.
De repente, ficámos todos isolados, inquietos quanto à possibilidade da sobrevivência, distanciados uns dos outros e com as liberdades restringidas. Dependentes das notícias, das mesas redondas televisionadas, do número de infectados e de mortos, que não para de crescer. Em tele-trabalho, aqueles que ainda o têm. Sem possibilidade de viajar (actividade favorita dos nossos tempos), com as linhas aéreas, os hotéis, as estâncias turísticas, os restaurantes, todos técnica ou realmente falidos. Confrontados estamos enfim com a realidade depurada: somos aquilo que transportamos em nós, o nosso verdadeiro crédito é a nossa capacidade de resistência e de criatividade, os afectos que despertámos durante a vida e cuja expressão nos chega agora virtualmente. O nosso maior consolo reside na voz solidária que a tecnologia permite que viaje até ao nosso ser isolado.  O nosso ser cada dia mais desinfectado com álcool e lexívia, o nosso ser equipado com máscara e luvas descartáveis e que não pode aproximar-se do outro, por receio de contaminação.

A vida tem a sua forma própria de nos ensinar. Se não vai a bem, vai a mal. E, quando não vai a mal, suspeito que tudo cessará na implacável lei da transmutação universal.
Há quem diga que, após esta crise, não restará pedra sobre pedra. Talvez nem tanto, mas que o alinhamento das pedras será seguramente diferente, disso não tenho qualquer dúvida.
Por mim, enquanto por cá andar, procurarei reter no meu coração a memória do abraço, dos afectos verdadeiros, da excelência da beleza, do amor que as minhas crianças  sempre me despertaram mas a quem talvez não volte a abraçar, do companheirismo espiritual que encontrei ao longo da minha já longa existência. A beleza inexcedível da natureza, as minhas amadas flores, o sentimento de me ter sentido toda a vida cidadã do mundo, a memória do voo a olhar o ponto mais alto, todos os milagres que sempre me aconteceram em desafio às leis da humanidade...

Todos desconhecemos o amanhã mas, como os cidadãos de “Fahrenheit 451” com os livros, preservemos cada um a memória do abraço de alma, o único que vale a pena guardar.
Aconteça o que acontecer.
Por ora, a atmosfera está mais limpa e já se vêm peixes e cisnes nos canais de uma Veneza sem turistas...

Mariana Inverno, NOTAS À SOMBRA DOS TEMPOS
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[1]"A Terra é um só país. Somos ondas do mesmo mar. Folhas da mesma árvore.Flores do mesmo jardim"
Mírzá Husayn-'Alí (1817-1892)






domingo, 1 de março de 2020

NASCEMOS PARA AMAR

"NASCEMOS PARA AMAR,
MAS TUDO O QUE AMAMOS
É TEMPORÁRIO."
George Saunders



Como Saunders escreve, tudo é temporário, a começar por nós próprios, manifestados aqui nesta densa 3ªdimensão, a consciência velada por muitos filtros e com vidas em geral ensombradas por enigmas que não conseguimos descodificar.
A Física Quântica começa a ajudar-nos a compreender um pouco mais como tudo quanto realmente existe para os seres encarnados é o presente, no qual o passado e o futuro são meras abstracções/projecções da mente linear. Se só o presente realmente existe e nele, se quiserem, vive a junção do dito passado (sob a forma de memórias e marcas deixadas no ser) com o potencial futuro (desdobrável em múltiplas rotas alternativas). Ambos, passado e futuro, SÃO aqui e agora no Presente e essa é a única realidade palpável e verdadeiramente existente para cada um de nós. É no reino da memória que o temporário se encaixa e a memória vive no Presente. Logo, no Presente sentimos a transitoriedade e o aparente finito das manifestações de vida, dos afectos e que os comportamentos relacionais são sempre a prazo.
Nada é bom ou mau, tudo É, na maia em que persistimos.



A projecção mental, individual e colectiva, levada a cabo neste plano, é um mero reflexo, relativo e frequentemente distorcido do que se passa a níveis profundos da Vida onde a criatividade radica. Ao cimo da Terra, vivemos e funcionamos mentalmente na dualidade que é um dos maiores desafios ao nosso verdadeiro progresso interior. Somos actores num tempo-espaço próprios da vibração em que nos encontramos interligados nesta dimensão, mas o processo criativo emana de níveis muito profundos a que a consciência actual não tem acesso e onde esse conceito de tempo-espaço não se aplica (importante ler Planck e a sua constante h).
A reprogramação mental funciona...temporariamente. Só o trabalho na consciência nos faz avançar verdadeiramente pois permite a integração plena dos ensinamentos que a vida nos vai proporcionando e, desejavelmente, nos conduzirá um dia à integração dos opostos, ultrapassando a dualidade.
Somos, creio, efectivamente avatares, mestres de nós próprios, pois nada nos pode treinar/ensinar mais adequadamente do que a nossa própria experiência integrada. O ego, órgão regulador sem qual não existimos, tem sido contudo no estádio actual da humanidade elevado no ser  a uma "categoria hierárquica" que lhe não pertence, daí a involução que a muitos níveis se nota.
Ultrapassar os níveis actuais de profundo sofrimento na Terra tem de ser o objectivo central da nossa actuação e isso só se conseguirá através da alteração do paradigma central que comanda a nossa existência. Essa mudança nunca poderá vir de fora para dentro, como a política tenta levar a cabo, mas terá de ir irrompendo da consciência trabalhada de cada um (palavras-chave para o processo: humildade, estudo aplicado do conhecimento mais avançado, vigilância do ego, inteligência emocional, entrega ao processo criativo individual e colectivo, compaixão, coragem, escuta interna, não competição...e tantas outras).