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terça-feira, 30 de outubro de 2018

A INDIFERENÇA


Donald Trump acaba de anunciar o reforço de tropas junto da fronteira com o México de 2.000 para 7.200, números  ainda a ajustar conforme as necessidades. Objectivo: reprimir as multidões de refugiados, exaustos caminhantes de muitas semanas e entre os quais muitas e muitas mulheres e crianças, impedindo-os de entrar no El Dorado da imaginação de quem foge à miséria.
No Brasil, Bolsonaro promete armar a população, legitimar assassinatos por militares e civis, pagar ainda menos às mulheres e, salvo erro, esterilizar os pobres. Marine LePen, Salvini e outros que tal rejubilam com a vitória deste grosseiro rascunho de chefe de estado, projectando uma aliança política que possa controlar o destino das nações. O Brexit leva do seu ambiente natural, a Europa, um dos mais icónicos países da União – querem ser grandes de novo, mais prósperos e sem o peso da pesada contribuição para o bem comum, querem fazer negócios milionários e a Europa que se lixe.
Nas empresas e nas famílias, há cada vez maior indiferença aos destinos individuais – às suas dores e adversidade. Uma vez que o desequilíbrio de qualquer ordem ou a doença se instalam, a utilidade do indivíduo é posta em causa e passa a enfileirar as  multidões de desempregados ou a ser relegado para o reino do esquecimento, arrumado na prateleira de  alguma instituição, entregue à mais profunda  e dramática solidão.
A esquerda política foi vendo os seus objectivos cumpridos no séc. XX e ficou de agenda esvaziada, agarrando-se actualmente a acordos com os inimigos do passado para preservar algum poder.
Tudo acelerou, a memória tornou-se cada vez mais breve, instalou-se o automatismo nos indivíduos a quem nem passa pela cabeça escrutinar as profundezas do seu ser em busca da Sombra. Sobrevive-se na superficialidade, no imediatismo, na oportunidade  de ganhar mais uns euros ou de ser estrela fortuita nalgum reality show da televisão. Agora até já se casa sem conhecer a noiva/noivo. Sucedem-se os desastres  naturais, ninguém sabe se o telhado da casa lhe voará de um momento para outro. Ou se, num passeio descuidado pelo centro de uma cidade ou aldeia amada, não se tornará a vítima acidental  de um carrinha ou de um camião guiado por um terrorista ou por um louco.

Despertemos da insanidade colectiva!

A mensagem da indiferença instalada – com todas as suas consequências - clama a gritos que acordemos para o trabalho de consciência, para o colectivo, a prossecução da paz e a repartição da riqueza. O destino dos humanos terrestres está inevitavelmente ligado e, se cada um, no seu pequeno núcleo familiar e social, trabalhasse com empenho na reabitação dos valores fundamentais que promovem o progresso espiritual da humanidade, todos os outros progressos se lhe seguiriam. Caso contrário, o avanço tecnológico destituído de qualquer sentimento, mas que era suposto facilitar a nossa vida, virá a acabar com ela.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

A PARTIR DA FRACTURA

                                               
Escreve a partir de uma fractura.
Um espaço abissal que se abriu entre ela no presente e a vida do passado. Agora parece ser o tempo das penalizações, cantos angulares a farpearem os dias, tempos pincelados de faltas, vazios, ausências – um cansaço imenso, um sem propósito aparente.
Não sabe o que lhe falta, quem lhe faz falta, quem a deixou. Reaprende aquilo de que é feita, avança entre as urtigas, faz de si mesma – idealizada – se a ocasião o pede. Mas não há canto. Nem janelas abertas para o sonho. É tudo concreto, materializável, não existem mais caminhos sublimes nem idealizações.

Ama aquele ser. Amar é uma coisa diferente do que as pessoas pensam. Amar é sentir até ao âmago que se é parte duma mesma coisa. É pertença, respiração justaposta, alegria irracional, localiza-se algures abaixo da derme do terno coração pulsante.
Pois ela ama assim aquele ser,  mas também lho levaram. Findou o tempo. São perigosas as alianças de alma tão fortes, pois ainda que indestrutíveis, na distância parecem subsistir apenas vastos mares de silêncio e de ausência.
As pessoas calculam a vida sobre um joelho coxo. Afirmam a pés juntos que um e um são dois. Destituídas e enfermas são contudo capazes das maiores crueldades. E, hoje em dia, tanto alinham com o nazismo como com o altruísmo, tudo ao de leve, de passagem, meteórico. Inconsequente.

Ela amarga. Ela quase a virar as últimas esquinas. Ela incrustada numa pedra porosa e cinza, vagas são as lembranças de outros dias, quando se sentia figura central de  um fogo de sarça.
Já não sabe se valeu a pena, se alguma coisa valeu a pena.  Os rostos e os gestos enganaram-na, iludida pela própria ingenuidade. Precisa de partir como um sopro, sem ruído, eliminar-se dos cenários criados, desconstruí-los por inadequados. É tempo de rumar até aos horizontes da Simplicidade, assim que possível.
Quando não pode mais, chama pela Mãe. Chora no seu colo invisível. Depois, apaziguada, prossegue.


Mariana Inverno, in “Livro dos Afectos”
Quadro: Isao Tomoda

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

SER REACTIVO

Erik Thor Sandberg, Toehold (2015).

“Todos os erros humanos são fruto da impaciência.
Interrupção prematura de um processo ordenado, obstáculo
artificial levantado em redor de uma realidade artificial.”
KAFKA

É difícil viver. Mas, em geral, ainda é mais difícil conseguir  sustentar com os outros  um diálogo equilibrado, baseado em troca de ideias próprias e onde se faça sentir o respeito recíproco. Entenda-se aqui por “diálogo” tudo o que são laços, relações, comportamentos entre pessoas. Em resumo, interactividade.
Por todo o lado, nos deparamos com gente a reagir  - a defender-se preventivamente ou a acusar com precipitação – e não se passa da cepa torta.
A  reactividade abrupta ao que nos acontece nunca nos permite dar a melhor resposta às questões que a vida nos coloca. Cega-nos, confunde-nos, alimenta conflitos e atritos. Distancia-nos de nós mesmos, ofusca a nossa luz e impede a paz interior.
Reconheço que na minha juventude era muito reactiva. Foi através  de dores, desilusões, perdas e revezes que fui aprendendo, com dificuldade, a dar um passo atrás quando a vida me confronta com os seus desafios, quando o discurso do outro me irrita ou me injustiça ou o seu comportamento constitui uma ameaça, quando não uma traição, ao laço ou ao acordo de qualquer ordem existente entre nós.
Este tipo de transformação pressupõe aceitar a vida e os outros tal como se apresentam. Significa não entrar no jogo erróneo dos egos, pois o nosso comportamento não pode depender da conduta alheia. Ante as dificuldades e as dores, é no silêncio da minha interioridade, longe de comportamentos impulsivos e dos esquemas habituais que sinto, de algum modo, activarem-se misteriosos mecanismos conducentes a soluções e ao apaziguamento interior.
A vida e os outros, mesmo os mais próximos, não são controláveis. Só me posso tentar controlar a mim mesma, na medida do possível, através do auto-conhecimento. Este processo tem-me levado a vida inteira e é só nos últimos tempos que sinto ter alcançado algum sucesso.

Aprender a avaliar as emoções, as nossas e as alheias, através da inteligência emocional, controlar a ansiedade e não alimentar as forças da sombra com as suas congéneres em nós, são pilares fundamentais para a nossa libertação.

Permite-nos o dom da humildade, maior clareza de visão, acaba com a vitimização, nutre em nós a empatia pelo outro e aquele sentir suave e estruturante, perfumado de céus, a que chamamos paz interior.

sábado, 6 de janeiro de 2018

O QUE VEJO DEPENDE DO MEU OLHAR


“---a consciência termina bem lá no alto,
na estratosfera das experiências multissensoriais
complexas e integradas,
às quais se aplica a subjectividade.”
ANTÓNIO DAMÁSIO, in “A Estranha Ordem das Coisas”


O que vejo depende da qualidade do meu olhar. E este está intrinsecamente ligado com aquilo que fiz comigo e com a minha vida até hoje, dentro do perímetro circunstancial que me coube.
Assaltam-me em cada momento múltiplas imagens, ligadas com frequência a pensamentos mais ou menos erráticos e é apenas num esforço de concentração que consigo que o foco se estreite e se fixe em determinada questão, assunto, tema, problema e gere uma percepção mais ou menos coerente e continuada do mesmo. Ora, nessa percepção intervêm de forma incontornável a memória, as recordações e a minha forma única de sentir. Vejo-me então a braços com aquilo a que chamo a minha perspectiva da vida,  da minha e da dos outros. O certo e o errado, o bem e o mal, o positivo e o negativo, o luminoso e o obscuro dançam então a sua dança dual dentro de mim.
Alegro-me e sofro – sobretudo sofro – ao esquecer-me de questionar os fundamentos da minha percepção e desgasto a minha preciosa energia, sem conseguir seguir em frente, como sempre desejo. Como pano de fundo e eternamente presente, existe uma sensação de “ser”, um ser como ninguém mais, de forma única e original, um forte sentimento de pertença a mim mesma, sendo “eu mesma” algo que transcende a minha compreensão intelectual.
Este eu que me habita de forma ininterrupta e me garante a continuidade, apresenta-se-me imune ao tempo, espaço e circunstâncias – fui, sou, de certeza serei até ao último sopro nesta dimensão, a mesma – imutável e sem idade.


Intriga-me a constância e uma certa pureza desse eu, apetecia-me questionar-lhe a origem, mas trata-se de um exercício falhado à partida, pois véus infinitos impedem o acesso a tal mistério.

O que me resta? Prosseguir o meu caminho de forma humilde, com a força que a eliminação de verdades últimas me confere. Perceber que há tantos mundos como seres encarnados, que a minha forma de percepcionar a vida é única mas não aplicável aos outros e às suas opções e que, em consequência, não me compensa sofrer por aquilo que vejo como a sua falta de princípios, moral, pensamento elevado, et cetera.  Que tudo tem sempre de ser colocado num quadro mais vasto que a minha consciência infelizmente não abrange e que o sentimento de posse é a maior das ilusões.
Melhor e mais produtivo será que me ocupe com o ordenamento possível do que me habita e com a tentativa de integrar as minhas experiências, esforço do qual surge inevitavelmente o processo criativo.

Mariana Inverno


segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

PASSAGEM DE ANO



Cansei-me de dizer sempre o mesmo, como se morássemos todos numa avenida ajardinada, com casinhas de bonecas de ambos os lados e dentro delas se confundissem o louro brilho do champanhe com o das pratas, a música adequada à “passagem de ano”, os vestidos de lamé e os abraços e os beijos, perfumados de vapores etílicos, que é costume trocar à meia-noite.

Cansei-me porque me cansa tudo o que é repetitivo, inquestionado, convencional, mentiroso, decidi seguir a inspiração do Don Juan de Castaneda e desistir dos caminhos que não têm coração. Vai adiantada a hora na minha vida,  há cada vez menos lugar nela para os embustes, mesmo os que me foram inculcados desde a meninice.

Perdoem-me por isso se vos não deixo palavras grandiloquentes, plenas de bênçãos e votos de euromilhões para todos. Seria uma farsa, pois o mundo ruge de dor e desvarios, a insanidade está instalada ao mais alto nível e a Vida pede-nos a gritos que subamos uma oitava na consciência para melhor compreender o que se está a passar e, assim, possamos elevar-nos acima das distracções que nos controlam.

Cansei-me, não de celebrar a Vida, mas de celebrar a morte em vida, que é o que a alienação dos finais de ano, por exemplo, representa. Trata-se de uma mera convenção, desconvencionável a qualquer momento, sobretudo transformável por forma a gerar mais lucro.

Perdoem-me se vos estrago a festa, perdoem-me a falta de glamour, a impertinência e a austeridade. É por vos desejar todos os dias da minha vida, Paz, Saúde  e uma Consciência mais apurada. Tal como o faço hoje, com o calendário a marcar 1 de Janeiro de 2018!