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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

PARÁBOLAS

 Com palavras amo, escreveu o poeta. Com palavras canto, danço fantásticos passos de criação,  encontro as matizes secretas das coisas, apalpo ao de leve o pulsar profundo da vida. Com palavras subo à nota mais vibrante da oração, rasgo janelas sobre mundos esquivos, apaziguo as minhas ânsias e dou rosto ao indizível, por momentos deusa efémera do Verbo.
Escritas como se de fonte eterna elas brotassem, as palavras esculpem as minhas horas e aí deixam o rastro do choro ou do êxtase, soluçantes e mágicas, testemunho da passagem.

Com palavras me descubro e me revejo, sem saber que sou aquilo que as palavras me dizem que eu sou. Com palavras amo, sim, e com palavras mato. Exorciso, exerço a tentadora prática da sedução, reponho a verdade e construo a mentira da ilusão. As palavras doces, as intensas, as profundas, as orgásticas. As duras, certeiramente mortais, as ditas palavras de agape e de luz bem como as suas sombrias companheiras do desamor.
Com palavras incito, inspiro, embelezo, castigo, reduzo a cinzas, faço os meus lutos, apoio o outro, lanço no ar perfumes de coisas por saber ou relembrar, invento eternidades no que já passou ou nunca foi. Com  palavras sou maior, sou mais eu e deixo de ser quem sou pois elas transcendem os meus limites conhecidos, ponte entre mim e Eu e mais alguma coisa que não sei o que é mas que vibra em contínuo, inalcançável quase sempre na latência dos dias.

Faço tantas coisas com palavras,  refaço-me a mim e, de cada vez, abrem-se inesperadas brechas para o que eu já era sem o saber. Com palavras eu descubro outras palavras dentro delas, mundos, intermundos, sinapses de um todo incompreensível, estonteante.
Serão parábolas, afinal, formas de me representar e ao fogo que me anima, instrumentos de construção/destruição, assentes num núcleo mórfico e periferias dançantes, laços precários com a eternidade.

Com palavras escrevo, respiro. Não sei o que são, donde vêm, mas habitam-me, poderosamente emotivas e transformadoras e nelas me celebro, no fugaz instante que passa.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

NATAL OUTRA VEZ


Passamos a vida entre símbolos e crenças, tradições e mitos, apoiados num jogo de imagens, sons, hábitos que nos emprestam cor e, às vezes, um certo sentido à vida.
Alguns destes apoios existenciais ligam-se directamente com o coração e com os afectos. Era assim quando, criança, entrava eu numa espécie de estado alterado de consciência com a aproximação do Natal, os seus cheiros, frio, sapatinho na chaminé - onde se materializavam na manhã de Natal  os livros com que sonhara – e a imagem do Menino Jesus nas palhinhas deitado. Havia excitação, muito que fazer, o afecto no coração das pessoas parecia iluminá-las de forma especial quando diziam “É Natal!”, os olhos inundados de uma tolerância inusual.
Claro que não era bem assim, mas deste modo eu sentia a magia do Natal, pretexto para as prendas, as cores quentes e brilhantes dos enfeites, comida boa em abundância, amor, partilha. Eramos todos mais pobres mas que rica eu me sentia com o meu magro orçamento de alguns escudos que sensatamente administrava para que a todos coubesse um miminho.
Passaram anos-luz de lá para cá e parece-me que o que hoje acontece, para além de uma mega operação comercial – também ela em declínio, dada a crise – é um eco vago e muito falseado do Natal que eu conheci e que, a prazo, tenderá a desaparecer.

Contudo, o coração humano precisa de Natais. Carece de processos ritualísticos que mantenham aceso o fogo interno e nos assegurem do efeito-milagre do abraço e da dádiva e de acreditarmos na salvação.

Pelo que o Natal já foi e em nome de um “Natal” futuro, radicado no coração aberto da humanidade, deixo-vos aqui o meu abraço caloroso, amigos e companheiros de rota no planeta Terra, neste histórico ano de 2011.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

FLYING OVER A CUCKOO’S NEST




Sou filha do Universo.

Confundem-se em mim estranhas combinações advindas com certeza de origens diversas e ainda longínquas para a Terra… A Terra onde hoje se vive uma agenda negra e sem esperança. A par desta, contudo, sinto que corre em silêncio uma outra história, dissociada das acções imediatas da humanidade terrestre, um agendamento maior integrado no todo, nos ciclos imparáveis da vida e da morte que depois é vida e a seguir é morte para logo ser vida renascida.

Aquilo que ocorre subjacente à vida de superfície tranquiliza o meu corpo emocional e empresta o único sentido possível para eu estar aqui neste momento transformacional, tempo de síntese e ascensão vibratória para aqueles que as puderem e souberem permitir.



Sempre ocorreram milagres na minha vida. Ou seja, princípios/formulas desconhecidas pelo estabelecido permitiram muitas vezes e de modo inesperado que a improvável saída dos problemas ocorresse. Nunca a mente soube explicar bem estes “fenómenos”, mas algo de muito central/centrado em mim os recebeu, de cada vez, como naturais. Na hora que passa, acentua-se gradualmente a minha ligação consciente a esse nível vibratorio para onde sinto que desce de modo imparável um esplendor sem fim, inerente à própria Vida nas suas ilimitadas possibilidades.

Escangalham-se os acordos, caiem as instiutições – pilares paradigmáticos do mundo tal como o sabemos – esboroa-se o estado social, volatilizam-se como num pesadelo as condições de vida e sobrevivência de milhões, após séculos de duras lutas, sociais e políticas. Ninguém sabe para onde se caminha, mas as previsões são negras.



Algo está, contudo, a mudar em mim pois esse cenário desconhecido não me inquieta. Caminho com a hora que desce sobre o meu ser em escuta, na humildade de nada saber ao certo, entregue e confiante na Vida Maior. Viro-me mais e mais para esse interior inexplorado onde, suspeito, vivem as chaves da salvação. Esse centro cristalino donde emergem as pontes dos afectos, da solidariedade, do impulso artístico e de um canto quente e húmido como o pulsar da vida.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

RIO ACIMA



O que está a acontecer agora?

Multiplicaram-se as coisas para fazer, as solicitações, as dificuldades, o trabalho e os deveres a crescerem brutalmente nos dias da minha vida e este cansaço imenso  dentro do meu corpo, a mente a querer soltar-se, a alma tão desejosa de promover as pontes para uma outra coisa, vibração mais alta, diferente…
 
Se estou entre o Céu e a Terra, o facto é que me sinto a caminhar quase sem descanso por uma estrada aparentemente impeditiva do meu passo, escolhos e esboços de ligações precárias por todos os lados, as coisas a partirem-se, a ajustarem-se, tudo quase, ao milímetro, o sufoco de quem sabe que tem de aguentar, tem de conseguir passar pela porta estreita, que há no profundo da Vida um Oriente para onde os corpos se querem voltar…


Tudo tão relativo, o caminho fez-se para agora ser reconhecido como ilusão, assim que foi importante tudo quanto empreendi, quanto me trouxe até aqui, a este ponto do entrecruzar de forças que me puxam em todas as direcções, mil tentáculos agentes da minha prova-límite, nesta etapa.

Há que escrever tudo de novo, a palavra purificada pelo ouro solar, o encantamento a querer ressurgir numa inocência agora sábia (haverá outra?).

Não fica pedra sobre pedra, pó sobre pó, embora tudo continue lá, na vida de superfície. Sei que busco o Grande Horizonte, os Grandes Mistérios, a Divindade dentro de mim. Não obstante as grades, abismos, tabiques, densidade sufocante, espessos véus encobridores da luz, abro-me sem dúvidas a um Gigante no profundo do Ser.
Já nada é facilmente adjectivável, talvez que a própria qualificação pela palavra já tenha vivido o seu próprio tempo de ilusão e agora tenhamos de a depurar de artificialismos românticos e vãos. Aos poucos, pequenos mas definitivos os passos na auto-escuta.

Prossigo. Titubeante ainda mas tão segura de que por detrás de mim vivo Eu e só a voz desse Eu me saberá guiar rio acima.


quarta-feira, 16 de novembro de 2011

MENTES FOSSILIZADAS

Se há área que me seduza e alimente em mim a esperança num futuro mais equilibrado e justo, essa é a da educação. Pelo muito trabalho a fazer, pela perspectiva que urge mudar, por ser a educação aquilo que deixa no ser humano marcas e referências incontornáveis e determina, pela vida fora, a qualidade da sua caminhada na Terra.
É por demais óbvio que os programas educacionais implementados pela ordem vigente e a vida que levamos contribuem para fossilizar as mentes pois ênfase profundo é colocado numa formatação densa e normótica desde os primeiros anos da vida, em completa obliteração da liberdade e leveza originais com que a encarnação começa por se manifestar no planeta.
A agilidade mental necessária ao questionamento da vida e das situações bem como ao brotar de respostas criativas fica comprometida desde cedo através de programas que não deixam qualquer margem de manobra para aquela. A função central da educação deveria ser o despertar o ser humano para o seu propósito maior na Terra, para a especificidade da sua essência nele dormentes. Cada ser humano traz consigo um imenso potencial criativo – idealmente a explorar de forma única – e caberia aos educadores e à sociedade em geral estimular a descoberta desse vasto e diversificado repositório de talentos e qualidades particulares de cada ser, o qual representa afinal o grande legado da espécie humana terrestre.
Ora, nas sociedades actuais, em que por um lado programas educacionais medíocres, cada vez mais debelados de profundidade, são impostos aos educandos como metas-padrão para que lhes sejam passados atestados  de qualificação profissional e por outro a vida social se passa entre o shopping centre, a aberrrante televisão e os jogos de computador, não se podem esperar resultados por aí além. A grande maioria dos jovens torna-se  flor murcha à partida, fossilizados pela educação num comportamento robótico, incapazes de articular o pensamento para além de um modesto léxico de 3.500 palavras que, por vezes, nem soletrar de forma correcta conseguem. Como se o espírito, silenciado por essa castrante formatação, se tivesse distanciado do seu portador, não possibilitando assim uma mais genuina manifestação.
Dói-me, dói-me muito. Vejo a miséria da submissão, o adormecimento da luz interior, a estupidificação, a vulgaridade. O planeta está povoado de seres manipuláveis, os escravos modernos, exactamente as peças necessárias ao enfraquecimento do único factor que pode salvar a humanidade: o poder criativo. Aquele que cria dispõe de estruturas internas arejadas, sabe escutar, olhar. Prescruta, investiga, canta, põe em causa, abre-se a novas perspectivas, aponta  sempre para mais alto, como o solitário pássaro de San Juan de la Cruz. O criativo sabe estabelecer de forma intuitiva novas conexões com os elementos conhecidos e, sobretudo, com os apenas pressentidos. À mente afloram-lhe com naturalidade combinações únicas, frequentemente geradoras de novos caminhos, mais justos e promissores. A criação verdadeira é sempre bela e comovente! Combustível da Esperança, ela é no fundo a única verdadeira riqueza que podemos deixar aos nossos descendentes.
Toda esta problemática levanta complexas questões relacionadas com a educação das nossas crianças e os padrões da vida que levamos e lhes impomos como referência. Parece-me urgente que resgatemos dentro de nós os valores dos afectos, da ligação à mãe natureza e aos animais, nossos companheiros na Terra, os nobres valores da consciência social e do empreendorismo responsável nas diferentes áreas da existência humana. Que reencontremos a coragem de questionar a qualidade da vida que nos foi sendo imposta e que, quase inconscientemente, deixámos que fosse minando todas as horas dos nossos dias.
Grandes mudanças são necessárias, mas não nos podemos amedrontar pela gigantesca tarefa que se vislumbra. Há que começar por algum lado e, no fundo, pode ser mais simples do que parece.
Paro. Escuto. Olho.
Quem sou? Este ser de superfície, moldado por forças alienadas, que se debate por manter o pescoço fora de água, ou algo que nas profundezas de mim mesmo espera a hora da sua expressão? Ao que venho? O que é que me faz feliz?
O que é que permanece em mim, quando o ruído esmorece e as luzes se apagam?
Diante de quê é que o meu coração canta?
Por onde anda a luz dos meus sonhos, o que é que dorme latente, esquecido em mim, como posso purificar-me ao ponto de expressar em mim o máximo de energia do que realmente sou?

A optimização do ser terá de constituir  o fulcro central da educação. Passa pelo amor, pelo respeito e pela dádiva contínua, passa por uma inequívoca ambição espiritual e por muito trabalho realizado incansavelmente na Alegria maior da consciência em expansão.

domingo, 13 de novembro de 2011

A HORA DA DISSIDÊNCIA

Ando pelas artes, a escrita, essas coisas ditas da cultura contra as quais sopram hoje em dia ventos contrários. Nunca foi fácil, mas agora ergue-se com inesperado vigor o negro e barrento muro da situação económica como pretexto para todos os cortes.
Ser culto qualquer dia é capaz de passar a condição subversiva (lembram-se de “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury?), a ficção anuncia frequentemente o que há-de vir, uma forma “soft” de nos preparar para o inesperado. Percorre-me um calafrio quando imagino uma sociedade ainda mais ignorante e normótica do que a actual, onde artigos como este poriam de imediato fim à minha vida.
O que é que nós aprendemos, companheiros, neste grão de poeira suspenso no cosmos que é a Terra? Como é que continuamos a consentir que meia dúzia de seres alienados ditem o nosso caminho e a qualidade da nossa vida na Terra?
Não avalizo guerras de nenhum tipo, mas falo de um levantamento interior, determinado e lúcido, em prol do alargamento de horizontes e da expansão da consciência. Um assumir de que albergamos dentro de nós uma soberania esquecida, a luminosa capacidade de recriar a partir dos escombros e das cinzas.
O Espírito nunca se rende. E só com ele podemos em verdade contar para escapar ao destino da fénix que, embora sempre renascida, parece nada aprender pois continua a fazer os mesmos erros que levam à sua destruição cíclica.
As respostas não estão com certeza nos lugares habituais. Historicamente falando, claro. Há que redescobrir a coragem e a tenacidade e subir uma oitava no canto interior. Há que relembrar os conselhos dos poetas, que pelo sonho é que vamos e que se faz caminho ao andar. Se nos queimarem todos os livros, ainda teremos a nossa memória para guardar as palavras. Somos muitos e, como no romance de Bradbury, se cada um de nós memorizar um livro, o conhecimento não se perderá pois resta-nos a partilha que a todos enriquece.
Chegou a hora de pormos fim às guerras e aos conflitos, à separatividade. É a hora da verdadeira Dissidência, o começo do fim das ilusórias diferenças que nos conduziram à insanidade dos dias actuais.
Temos de reaprender a chamar as coisas pelo seu nome pois este é um tempo revelador o qual, malgré nous, tudo traz à superfície. Nem nada nem ninguém podem impedir o cair dos véus pois há um tempo certo para tudo. Este é o de abrir o coração e deixar o Espírito impulsionar os actos, por mais absurdos que eles nos pareçam.
Amén.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

CHAVES

Fora, como muitos outros, (a)traída pelo amor romântico um par de vezes na sua vida.
Um par de vezes sentira-se amada até à loucura, rainha do mundo, a mais bela, a sine qua non, a musa e a número um, a maior, a melhor, a mulher da vida do outro, insubstituível, enviada dos deuses. Um par de vezes achara que ali estava enfim a alma-gémea, um pedaço da mesma coisa e que a impossível fusão aconteceria mesmo a qualquer momento.
Foram sonhos e mais sonhos, sobressaltos e desgostos, a projecção do entendimento total a dar lugar à realidade mais palpável dos equívocos e do distanciamento. Traições camufladas, competições (entre os dois géneros), lutas de poder e o sonho sempre adiado de tocar de verdade o infinito através do outro. Um dia percebeu o engano, a fraude, a imitação de Vida que estes relacionamentos amorosos quase todos são, mesmo os mais pacíficos.
Ela sabia o que lhe cantava no coração, conhecia a memória do corpo, a saudade da alma. A imagem de um outro passo tingia-lhe ainda o olhar de uma prata azulada, reminiscente de luares antiquíssimos, afins de uma bravia interioridade que só a doçura extrema e a pureza poderiam emular.
Tivera, alcançara...a ilusão desse ponto. Tudo hipérboles, exercícios divergentes da rotina, fantasias com efe minúsculo a demorá-la escusadamente.
Com o passar do tempo, sobrava ela, agora. A memória do corpo, o canto da alma. Grandes chaves para a longa estrada de regresso a si mesma.

Quadro: "Amore" de Andrew Gonzalez

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

EM NOME DO AMOR

A capacidade individual de imaginação leva-nos frequentemente a  todo o tipo de transferências, ao criarmos e alimentarmos laços fantasiados de fusão, seja com essa primeira e insubstituível figura que é a mãe, seja com os objectos de amor que vamos identificando pela vida fora. A  privação  afectiva conduz, de facto,  a todo o tipo de projecções e  identificações enganosas. Estas últimas ocorrem mais frequentemente no ser propenso ao auto-engano, em geral aquele que, por ser incapaz de se enfrentar verdadeiramente nos seus aspectos mais sombrios, encontra evasão, alívio e uma passageira auto-confirmação de bem-estar e de felicidade, na eternamente renovada (e actualizada) versão do que lhe "acontece” ou “vai acontecendo”no processo a que me habituei a chamar turismo emocional .

A palavra amor tem vindo a perder o sentido, pela banalização do seu uso. Chama-se amor a toda e qualquer excitação, por mais passageira e fútil que ela seja, ou meramente baseada numa atracção física. São também erroneamente identificadas como amor as projecções que não passam de meros processos de gratificação de um ego descompensado,  eternamente em busca de “contrapesos” para as suas frustrações ou para justificar o script que a persona alienada inventa e acarinha para a sua própria sobrevivência.

Num tempo em que tanto se fala de amor mas em que os exemplos de vivências de amor genuino e amadurecido são raros, parece-me que estamos de volta à estaca zero em termos de evolução nesta matéria.  Somos em geral seres descompensados, pouco ou nada conscientes do que em nós transportamos e, como tal, ao prosseguirmos as histórias imediatas (as que estão ao alcance da mão),  deixamos com frequência escapar a Verdadeira Vida.  Seja por ignorarmos ou relegarmos para lugar secundário os nossos mais importantes e já encontrados parceiros de rota na Terra, seja pela nossa incapacidade de nos preservarmos para esse encontro.
Tudo isto advém da falta de amor-próprio e da não integração do que é essa energia que permite, com o outro, tocar a transcendência. A experiência de amar, para ser verdadeira, não exige formatos ou compromissos.
Ela É em si mesma o compromisso e adapta-se naturalmente às circunstâncias da vida. Com a inocente alegria da dádiva e sem a ultrajante contabilidade hoje em dia demasiado presente nas “histórias de amor”.

sábado, 5 de novembro de 2011

O SER DE AQUÁRIO E O CANTO DE ANDRÉ

Após o canto, que lhe escoava da alma como luminoso nutriente da hora passante, falou e as palavras encontraram as suas irmãs esquecidas dentro de mim. As palavras dançaram o regozijo da identidade e senti o bafo inconfundível da Alegria.

A civilização anda à deriva, há muitos políticos mas não existem verdadeiros chefes de estado, as uniões são falsas, a prosperidade é falsa, as promessas foram vãs e as grandes conquistas que a humanidade alcançou desde o séc XIX, sob a forma de direitos e benefícios sociais, assentam afinal numa frágil e ilusória bolha que maquiavélicos alfinetes furam metodica e diariamente.

Vastas franjas da humanidade terrestre, na ordem dos biliões, nem sequer suspeitam que são ignorantes. Vegetam à sombra de uma inquestionada normose,  autómatos programados, seguros dos seus passos na inconsciência total da sua condição de marionetas, habilmente manipuladas por mãos ocultas e preversas.É a Cãmara das Trevas Exteriores.

Quando o ser humano transita para a consciência dessa ignorância, ele dá um verdadeiro salto quântico pois alarma-se, porque sabe agora nada saber. Entrou na Câmara da Ignorância.

É a partir deste ponto que se abrem as infinitas avenidas de acesso ao conhecimento. O ser humano, que sabe nada saber, busca conhecer, ir mais além ou mais adentro e despontam assim portais  nos horizontes da sua caminhada.  Câmara do Conhecimento.

Só a sabedoria nos permite realmente amar, o fulcral verbo tão levianamente conjugado...Câmara da Sabedoria.

E quem AMA pode. Quem alcança este ponto, quem ama de verdade encontra um sentido  de continuidade sagrada na existência, perde o medo e tem a coragem de nutrir os impulsos do seu ser essencial numa aparente indiferença aos espasmos globais, ao inculcar da desconfiança e da distância entre os seres em que as forças involutivas estão apostadas. Câmara do Poder.


Só neste percurso de coragem com a nossa interioridade será possível recuperar a soberania perdida e alcançar a vida mais abundante que o Ser de Aquário e o límpido canto de André nos prometem.


Quadro: Victor Vasarely.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

ALMA ANTIGA

Alma antiga, pedes-me que te escute recostada assim no momento da árvore alta que da minha cama vejo há décadas perder as folhas, nesta altura do ano, para logo as renovar quando a luz voltar a subir...
Passa o tempo e passo eu ou o que em mim se vê e dizes-me que não passe por mim sem que por mim eu passe, enquanto as folhas vão e vêm e a luz oculta busca em vão brechas para a liberdade.

Basta às vezes o sopro inesperado da palavra encorajadora. Há dias um amigo desejou-me que a par das belas rosas do meu jardim eu continuasse a produzir rosas metafísicas e aquilo foi de repente a luz inesperada a incendiar a esperança numa aurora húmida, abençoada, um recomeço harmonioso, postigo entreaberto para a vastidão do que transporto, sem nada poder. Sem acesso continuado, livre, em delírio, num parto íntimo e alargado ao tempo que me resta.

  Viver na simplicidade, soltar-me do obrigatório, ficar aqui eternamente na tecelagem da palavra de ouro, sonhar-me por inteiro, livre de este ser de superfície tão sacrificado, mandala lacrimejante nos dias baços do faz de conta.
Eu sou talvez apenas o que perdura dos instantes fugitivos da minha vida, essa é a memória activa e só aí posso colher as flores duradouras da criação. Percorrer esse caminho, mirar-lhe a face persistente... ser tudo e nada ser, no encalce do que me escapa e vai e vem pelas estrias da vida, saturado de luz e de sombras, a um tempo asfixiante e fugidio como as estrelas cadentes.

Dar à luz vezes sem conta, no incontornável vale dos soluços e da incerteza, dar à luz uma vez e outra, em pulsões intensas e reveladoras, a feliz agonia  do que se solta, doce crisálida em expansão, metamorfose.  

Possa eu nascer, por fim.

domingo, 30 de outubro de 2011

ASPIRINA PARA A FELICIDADE?

Pedias isso nesse jeito que a gente te conhece, pensamento que ocorre por vezes à maioria, quando a luz escasseia, o corpo pesa e a esperança parece um mito distante e inalcançável, tudo insuficiente, baço, tão pouco à altura...
E houve logo abraços e beijos, confortos, companhia (ainda que virtual), receita de aspirina para uma catrefada de coisas (como aqueles sampoos dois em um que estragam o cabelo, dizem) e tu ficaste confortada, agradecida, na mesma.
Se estivesse ao pé de ti, teria possivelmente dito as mesmas coisas e abraços e beijos com aquela afectividade que bem conheces. Mas se olhasses no fundo dos meus olhos, terias encontrado lagos imensos de solidão, uivos de um vento agreste, o desespero dos trilhos desconhecidos, a vibração incongruente do que nos fere sem ter nada a ver com este som único, pessoal que a alma emite. A pergunta persistente, o véu que se não levanta, aquele golpe de asa que o poeta cantou e que nos continua a faltar para atingir, sabe-se lá o quê...Mas sabemos que está lá, algures, impensavelmente encoberto, um princípio de resposta, trampolim para outras etapas.
No fundo dos meus olhos encontrarias, também, a doce luz da gratidão por estares aqui na Terra a par de mim, tu que podes entender o que te escrevo. E é só isto que verdadeiramente te posso dar, em jeito de aspirina para algum alívio.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

NO ENCALCE DAS COISAS

Para saber as coisas melhor, para as ver por dentro, eu preciso que o poeta em mim lance o seu olhar encantado sobre a realidade. Deixar que a sua voz doce e secreta nomeie os fios invisíveis, os preciosos filamentos subjacentes a tudo quanto existe e vibra com o coração da vida.  Tocar este fundo implica por vezes um delírio lúcido, num acto de amor desmesurado, sem marcações prévias. As palavras têm de gotejar como chuva inesperada, mas logo as palavras já não chegam, são os átomos do corpo a ganhar asas, um frémito, um vislumbre total do que se não sabe nem se pode saber e se consegue apenas soletrar.
Para saber as coisas melhor, há que transgredir, levantar véus oficiais, caminhar no escuro com o coração-lanterna a alumiar o caminho. Se se ama a vida, há que buscar-lhe o sentido, testemunhar a continuada transformação com a capacidade de transcender as barreiras do vigente que é própria do espírito.
Andamos todos enganados. Somos todos enganados. Mas aquele que ousa entra frequentemente, por entre sombras e ruinas, em consonância com os ritmos cósmicos e uma espécie de sonho primitivo, sendo-lhe franqueado por instantes o acesso a uma dimensão mais autêntica do espaço-tempo-vida, um acercamento a qualquer coisa mais verdadeira e sustentável no sentir.
Vertigem, sonho, vazio e absoluto, inocência febril a querer resgatar o rosto velado do que somos.

Quadro: Remedios Varo

domingo, 2 de outubro de 2011

DOS DIAS INCOLORES

Instalou-se nela um grande silêncio.
Aos poucos, fora-se afastando dos certos, dos correctos, dos virtuosos, dos superiores, dos que vêm mais, dos que conhecem, propagam, divulgam, estão acima...
Apartara-se do que parecia amor mas não era, do que se chamava cumplicidade e era só interesseirismo ou vazio ou qualquer coisa do género, das suas próprias ilusões àcerca de si mesma versus os outros, distanciara-se de tudo e agora tudo via através de um véu incolor mas efectivo.
Guardava as memórias do como se deve proceder e buscava cumprir. Era tudo.
Segurava a mão da mãe velhinha e sofredora, tocavam-na muito ainda as lembranças do seu empenho nela e nos irmãos, os desvelos, incondicional apoio. Tiveram a sorte de a ter tido, nunca haveria flores suficientes para a celebrar.. chorava por dentro a velhice, a incapacidade, a dor da impotência. Ainda o olhar sobre quem sofre, o gesto ainda, a partilha, tudo em câmara lenta, como num filme antigo.
Distanciara-se tanto de quase tudo e todos que bem poderia ser ela a partir e não a velhinha. Pois só o amor dá sentido à vida, só o toque das almas, a infinita compaixão, o gesto dos afectos... velas na noite escura da passagem por este ermo de incompreensões e simulacros.
Estranha a si mesma, marejada de lágrimas, algo em si persistentemente estupefacto perante a inverdade.

sábado, 17 de setembro de 2011

NARCISISMO


NARCISSUS de Caravaggio

Os traços subjacentes às  personalidades narcisistas encontram nos tempos que correm terreno fértil para desenvolvimento. Tudo na cultura popular e dos media sugere um atraente potencial de sucesso para o narcisista, ou seja, aquele que tem um sentido grandioso de si mesmo e que se sente, por conseguinte, com direito a um melhor tratamento do que os outros por ser especial e único.
O narcisista começa por ser atractivo e sedutor para os outros. Ele está imbuído de auto-paixão e é uma lenda para si mesmo. No entanto, a prazo, essas características acabam por se reflectir negativamente nos relacionamentos pois ninguém pode alimentar nada de criativo a olhar  mesmerizado para a própria imagem como se o mundo começasse e acabasse nela.
Há uma errónea tendência para confundir narcisismo com uma boa auto-estima. Enquanto esta representa o pilar seguro de uma personalidade estruturada e saudável, os traços narcisistas – os quais existem em diferentes graus nas pessoas podendo atingir níveis de desordem grave – porque exageradamente focados num só ser, acabam por atingir gravemente tudo e todos à sua volta, em especial o próprio.
Um narcisista é, de forma geral, arrogante, detem um ilimitado sentido de superioridade, sente que tudo lhe é devido e que não se submete ao que está abaixo do seu estatuto. Essencialmente egóico, centra as conversas à volta de si mesmo, vê-se e descreve-se como protagonista fabuloso das histórias fantasiadas que lhe acontecem e alimenta relações tendo em vista as suas próprias necessidades narcisistas. Não está particularmente interessado no outro (a não ser para os actos dos quais possa sair auto-glorificado), a bitola para todas as coisas passa pela resposta à pergunta que sempre se coloca: “Como é que isto/esta pessoa me faz sentir/me serve?”
Alimentar o ego desproporcionado, sentir-se bem, parecer ainda melhor e ouvir apenas aquilo que possa agradar aos traços doentios de uma personalidade  espelhada no lago da popularidade, do ser-se especial e do sucesso constituem, em resumo, o leitmotiv  deste tipo psicológico.
A exacerbação do materialismo (com todas as desordens que lhe são inerentes) tem dado origem, e nomeadamente neste milénio, a um acentuado crescimento destes traços entre os mais jovens. Na base deste fenómeno vive a ausência de valores espirituais, única força capaz de conter e transmutar a agressividade e a violência que por todo o mundo proliferam, bem como desmascarar a falácia da auto-promoção e da crença em se ser único e melhor do que o outro. A muito alimentada fantasia de que a pessoa é melhor do que realmente é – e certamente melhor do que os outros à sua volta – ignorando a realidade dos factos, está na origem de uma desordem individual e colectiva que começa a atingir níveis inquietantes.  O facilitismo na educação – pais indulgentes que com ilimitada complacência buscam construir a auto-estima dos filhos com elogios exagerados e um sistema escolar que baixa o nível de exigência e inflaciona as notas para corresponder aos requisitos das estatísticas -, o irrealismo do crédito fácil de um sistema financeiro ganancioso e virtual, bem como a constante pressão a todos os níveis para nos tornarmos “mais belos, mais ricos, mais bem sucedidos” do que o outro, tem levado as gerações mais novas a um beco sem saída bem representado na superficialidade dos “reality shows” onde perece toda a dimensão espiritual do ser.
Em resumo, o tão cantado “amor a si próprio”, quando de inspiração narcisista, ameaça tornar-nos num mundo de egocêntricos, obsessivamente concentrados na nossa aparência, bem estar pessoal, poder material e apenas e só naquilo que possa servir os nossos interesses pessoais. O narcisista tem sempre grandes expectativas em relação à sua vida mas é irrealista nas correspondentes projecções de fama e estatuto. A mulher sai especialmente afectada deste fenómeno, pois as características próprias da sua sensibilidade não se coadunam com a pressão e as tensões a que o fenómeno narcisista dá lugar. Num artigo publicado no “Guardian”(2009), Madeleine Bunting refere que a identidade das mulheres foi sempre emoldurada pelos seus relacionamentos- como mães, filhas, esposas, amigas e irmãs e que a “relacionabilidade” é ainda central para o modo como as mulheres vivem as suas vidas. Contudo ela não se coaduna com esta cultura individualista, intensamente competitiva e narcisista.  Isto dá-nos a pista para a cura de um mal que hoje ameaça atingir proporções epidémicas. Como em muitos outros campos, é ainda da mulher, geradora de vida e principal formadora do mundo de amanhã, que a consciência destes factos tem de emergir. E é principalmente dela que se espera a denúncia dos mesmos e as linhas orientadoras conducentes a um mundo mais são, onde se faça de novo sentir a música do espírito.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

PARA ALÉM DOS SENTIDOS

se te falasse das pequenas coisas que me assombram ficarias absorta na contemplação de um mundo que quase nunca vês e talvez daí colhesses a tal seiva húmida de que todos precisamos para ver...
vejo fealdade, rostos-esgar a passar em high speed  no ar poluído da metrópole, vejo os olhos vibrantemente azuis de um bebé que num canto da cafetaria me olhava como se conhecesse de há milénios – cristais líquidos  a desencantar memórias armazenadas algures no espaço akáshico – vejo as flores de fim de verão a desencadear corolas e corolas mântricas sobre o meu ser esfomeado...
canta na casa por muito tempo a água de um duche persistente na tentativa de limpeza daquele ser atormentado, o agressor chora passado o clímax da luta, para que foi tudo aquilo, não levou a nada, não valeu a pena, não vale as mágoas e o vazio...
a mulher-menina que já não é menina mas ainda não mulher apesar do avançado cronológico, segue auto-hipnotizada, a fingir que é quem não é e perde o útero, às vezes as mamas, finalmente a vida toda sem ter a coragem de olhar para dentro...
gritam, matam-se e esfolem, brandem armas em nome do único deus, dos direitos do povo, sujos, delinquentes, habitados pelo ódio, incapazes, incapazes - fios manipulatórios respiram de alívio...lá se foi mais um ditador que já não serve...
e eu e a minha pele suave, eu e os meus olhos de luz que os sinto assim sempre, eu quem sou por onde vou se é que vou por algum lado, aonde e quando colherei o meu prana, já que o tempo corre agora como a própria luz e se evade de mim como amante perseguido...
concentra-te em mim se puderes, busco-te para além do que sabes de ti mesma, alcanço-te por vezes no elusivo timbre da tua nota cósmica, aí me fundo no eterno abraço...

terça-feira, 30 de agosto de 2011

RESPIRAÇÃO PERSISTENTE

hoje despertei insana e contemplei com olhos novos os objectos ouro e prata, as flores quase asfixiadas no apartamento londrino, elas que aspiram aos céus e ao azul e ao ar fresco dos céus que reflectem...
o pouco sentido da repetição diária e a minha alma a empurrar docemente este veículo treinado para a vida de superfície, a minha alma a segredar, inaudíveis as vozes antigas, as futuras, pré-murmúrios de grandes revelações - acho eu que não desisto...
entro na onda do dia e mantenho-me paralela a mim mesma sem saber, pobre criança, como fazer da maneira que a alma queria que eu fizesse, tudo questionado e efémero salvo aquilo que não logro tocar mas que me dá sentido, valor, aquilo que canta que sonha que emerge uma vez e outra, sempre, como o dia, como a noite, como a lua e o sol e esta respiração persistente que me confirma...
se houvesse fios mais visíveis, pistas esclarecedores a alumiar o caminho – dizem ser antigo, tanto como a memória perdida – poderia para mim, quem sabe, acender-se a luz interna das coisas e saberia melhor a fonte do choro e do riso, sombras transmutadas...
poderia, quem sabe, ler nos interstícios, nas brechas, nos vazios, alcançaria a vastidão imensa de quem sou e nela beberia a seiva do infinito pela qual me consumo... 

Quadro: Remedios Varo

domingo, 28 de agosto de 2011

MANIFESTO POÉTICO À ORDEM NASCENTE

"Um pouco mais de sol - eu era brasa
Um pouco mais de azul - eu era além...
"(1)
Viajante do cosmos, pequeno-grande ser tolhido nas malhas de uma dimensão aprisionante, lembra-te que, agrilhoado em ti, vive o gérmen da tua libertação, na espera do teu ser em plenitude. Aprende que tudo é nada e nada é tudo e é contigo e por via de ti que correm todas as coisas eternamente, para cima e para baixo, em círculo e às avessas, tudo corre, viajante, no mesmo sentido único.
Diferente tudo e tudo igual. O Bem que é o Mal e o Mal que é o Bem. O claro que é escuro e o escuro que é claro. Num perpétuo rodopio de efeitos refeitos, desfeitos, trocados...
"
Apaga a minha flama, Deus,
Porque ela não serve para viver os dias
"(2)
Reacenderei o fogo da minha vida à luz do que sei que vou saber,
sem que o saiba já. Não serve prosseguir do mesmo modo.
Anunciados nos portais da consciência surgem os reconhecíveis
mas trémulos contornos de um novo Amanhã...
Morro transmutada pelo nascer do novo Ser.
"
Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer
"(3)
Pois eles não sabem que eu sou pássaro, nuvem
e a serpente alada que ascende aos céus.
Cruzo-me nos vazios cósmicos com os filhos das galáxias,
engolem-me vórtices e logo emerjo, coroada pelo bafo das estrelas,
pulsante, ágil, metáfora dos deuses,
canto azul translucente e ignoto
como o que só é pressentido...
Sonho ou escuto o eco inicial,
A voz antes de todas as vozes, se é que o foste...
Nenhuma palavra te define
Mas pulsas, imparável, no diálogo dos átomos que me formam
Na mais singela partícula de todas as coisas,
Pulsas vibrante, ó voz de outrora,
Voz do agora e de todo o porvir,
Misteriosa ligação entre céu e terra.
"
Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas
"(4)
E por isso me aventuro no inesperado espaço/tempo
Do meu Eu/agora
nos enleados voos da catadupa de estrelas
Eco maior, repetititvo,
bate em uníssono com este meu coração dourado
donde brota imparável um azul líquido e firme
- céu aberto sobre o chakra coronário
dos meus meninos de oiro,
todas as crianças do mundo,
aquela que se me assemelha e a outra
cuja pele ou é noite ou é canela
em doce contraste com a minha.
"
Eles nem sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
"(5)

Beijo o coração das coisas, as tenras folhas,
o restolho seco que me ecoa
quando passo, vaga e breve,
sob escolta do espírito Natura
entre as árvores antigas
e me assombro.

"Amo o infinitamente finito
e amo o impossivelmente possível
" (6)
Mas nada pode já conter as minhas asas
A voz única do meu ser.
Tudo é passagem, tudo é viagem.
Vivo, respiro, enfim não adiada.
"
Mãos de heróis, sem fé, acobardadas
Puseram grades sobre os precipícios
"(7)
Abro-me à vida que não sei, ainda que soluçante
na corda farpada que ousa intentar o paro
do passo do meu espírito.
"
Sou uma religiosa sem igreja,
Uma reclusa sem convento
"(8)
Não tenho livros sagrados que me guiem,
Antes me encontro, dolorosa e firme,
na crista do final de uns tempos já só estertor
Baixai línguas de fogo,
limpai o que era dantes o credo,
talvez em tempos a própria salvação.
Em nada de estanque posso crer
porque a alma segue solta
no fluido impulso da própria vida
a libertar-se das amarras da contenção e do pretenso.
Corro com lobos(9), sou também loba,
como sou pomba e ave e lagartixa, minhoca verde,
casulo e aroma incerto.
Sou sombra e dor e mágoa.
Grito, dentro dos ventos,
alucinada pelos fascinantes contornos
desse impossível que me ensinaram a ignorar.
E se
"Ogivas para o sol vejo-as cerradas"(10)
Se desabam as vigas estruturais
se o meu canto livre sofre a punição dos tempos,
se a fome e a mortandade nos assolam
e nos encombrem o promissor reflexo da luz
com a ilusão da força
Restas-me tu, irmã
Sobras-me tu, irmão
Mãos, corpos, uns olhos da alma
que tudo em tudo agregam
como a própria vida.
Pois
"
Não há separação;
Não há diferença
Não há tempo nem espaço
No uno, sagrado e eterno lugar
Em que residimos afectuosamente
"(11)
Partilharemos a última fruta
da macieira que alguém se esqueceu de arrancar,
entoaremos o som antigo que nos conforta,
ritmaremos os corpos, assim desvestidos da dor e dos suplícios
Restas-me tu, irmã
Sobras-me tu, irmão
Tu que espelhas a firmeza dos meus passos
e não vacilas, mas és bambu oscilante como eu
na incerta noite em que vivemos.
"
Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim
que a terra é curta, que o mar é pouco
que tudo é perto, princípio e fim
"(12)
Livrai-me, universo, das vozes que não criam
das que pouco ou nada expressam
e das mecânicas vozes a repetir o de sempre.
Amparai-me no meu destino sem rede
e, se fôr caso disso,
na ausência do pão, da água e dos afectos.
Apoiai o sentido íntimo desta rota
rumo ao mundo que desponta.
"
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
"(13)
Essa és tu, irmã
Aí resides, irmão, na imensurável Força...
Companheiros, pioneiros, conspiradores atentos
de uma ordem nascente, que há-de florir
como leitos de begónias na manhã nova.
Privilégios, amores, o teu destino
"
Não os compras, nem te vendes
E os teus gestos não buscam dividendos
"(14)

"Antes que tudo em tudo se transforme"(15)
Recupere-se o fôlego e fique inscrito na hora
"
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos
"(16)

MARIANA INVERNO,
Junho 2003


NOTAS
(1) Mário de Sá-Carneiro
(2) Clarice Lispector
(3) António Gedeão
(4) Florbela Espanca
(5) António Gedeão
(6) Álvaro de Campos
(7) Mário de Sá-Carneiro
(8) Rosa Leonor Pedro
(9) Referência a título de obra de Clarissa Pinkola Estés
(10) Mário de Sá-Carneiro
(11) Aldegice Machado da Rosa
(12) Fernanda de Castro
(13) Sophia de Mello Breyner
14) Sophia de Mello Breyner
(15) Fernando Pessoa
(16) Sophia de Mello Breyner

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

ESTAR SÓ e SOLIDÃO


Tenho reflectido muito sobre a questão de “estar só” versus “solidão” e acho que, salvo raras excepções e como tudo na vida, é preciso experimentar para não mitificar. Aqueles que nesta encarnação ainda não viveram em plenitude, de forma assumida e durante um período considerável de tempo, uma relação sentimental a dois é natural que busquem e sonhem e sintam nostalgia de algo que lhes pareceu sempre escapar e que, ilusoriamente, parece conter a resposta para o vazio que a algum nível sempre experimentam.

É  verdade que as relações íntimas são necessárias pois nenhum ser é uma ilha isolada. Mas o nosso frequente erro é não ter consciência de que uma valiosa e compensadora relação íntima não tem de passar necessariamente pela sexualidade. Nem pode representar dependência de outrem.

A atracção entre as almas, a coincidência de gostos e a afinidade espiritual são pilares adequados à construção de laços duradouros, estáveis, qualificados na sua prática diária pela alegria, confiança mútua, grande respeito e estímulo recíproco. São ligações reconfortantes e quem as sabe construir e nutrir dificilmente experimentará sentimentos de profunda solidão.

Por outro lado, os elos que implicam sexualidade, exactamente porque tocam no ponto nevrálgico do ser humano (não é o sexo um grande portal para o estabelecimento do mistério de quem somos, se tem como espinha dorsal a subida da kundalini?) acarretam desde logo outras implicações.  Envolvidos numa prática que toca como nenhuma outra as secretas profundezas (ou alturas) do ser, os corpos emocionais “descarrilam” facilmente, sob a tensão  de precário equilíbrio do jogo amoroso. A alguns momentos de êxtase seguem-se regra geral complicações relacionais geradas pela interacção de personalidades a maior parte das vezes enfermas de problemas graves e, mais cedo ou mais tarde, o “sonho de amor” torna-se pesadelo.

Não pretendo com esta argumentação negar a importância do amor sentimental entre as almas.  Parece-me contudo e por experiência própria que a humanidade padece ainda de males gravosos, primos da imaturidade emocional, da ignorância sobre o funcionamento do seu mecanismo energético e do seu psiquismo e, finalmente, de uma patética percepção romântica da vida que atrasa consideravelmente o seu passo evolutivo.

Não é possível partilhar com sucesso a  existência com quem não esteja na mesma frequência vibratória, não seja íntimo da nossa alma, não partilhe pelo menos alguns dos nossos sonhos e cujas células do corpo não falem às nossas e vice-versa. Este último aspecto – o mais misterioso de todos – é a chave para a sexualidade.
Há hoje em dia demasiada pressão social no sentido de dar propósito à vida através de relacionamentos amorosos, muitas vezes quanto mais melhor.  Nunca deixa de me surpreender a extraordinária mobilidade dos partners amorosos, em especial na área homossexual. Dificilmente haverá verdadeira mobilidade, pois não considero possível uma verdadeira entrega de corpo e alma a um outro ser com tão espantosa frequência. No meu entender, esta transferência constante representa um “tapa-buracos” ou um “penso rápido” para ir aguentando a vida e dar-lhe um falso sentido.

Por outro lado, a “obra” de cada um pede um espaço próprio, interior e exterior e, não raras vezes, ela é afectada, quando não mesmo obstaculizada,  pela ruidosa turbulência das ligações amorosas. Estas são, mais vulgarmente do que se possa pensar, danças de egos, jogos de interesses, padrões kármicos incompreendidos e que se repetem por consequência ad nauseam. Representam em suma a indesejável distracção do trabalho interior a que nenhum ser se pode evadir se quiser avançar.

Em conclusão, parece-me que antes de haver uma real disponibilidade para um relacionamento íntimo do tipo amoroso, os seres precisam de se encontrar a si mesmos, curar feridas encarnacionais e perceber que é dentro deles que se encontram todos os recursos necessários ao cumprimento pessoal.
O outro, se encontrado e vivido em circunstâncias saudáveis do ponto de vista emocional, espiritual e físico, o outro é a doce luz acompanhante da nossa rota, é do nosso jardim interior o manifestado perfume.