Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 25 de julho de 2019

COLD READER





Talvez valha a pena reflectir sobre o conceito de cold reader.  Uma amiga mencionou o termo há dias, durante uma conversa, aplicando-o a alguém que ambas conhecemos.

Cold reading é uma espécie de vampirismo de ideias, palavras, gestos, estilos, que uma pessoa faz da outra, através da observação e os utiliza, depois, de forma mimetizada. Sem ter integrado, é óbvio, tudo o que está por detrás de cada um deles: experiência pessoal específica, anos de estudo, uma inteligência concreta ou intuitiva,  heranças da linhagem e as múltiplas e em grande parte misteriosas variáveis ligadas a cada pessoa e que a tornam única. O cold reader é hábil nessa prática e passa muitas vezes não detectado, sendo pelo contrário objecto de admiração dos demais.

Na ponta extrema deste fenómeno e com uma acepção particular, situam-se os casos mais gritantes de cold reading de auto-proclamados médiums, videntes, leitores de tarot, certos psicólogos, et cetera, que abundam nas sociedades actuais em crise e se aprimoraram na arte de manipular os seus fragilizados clientes. Isso acontece através de uma desenvolvida capacidade de, através de declarações de carácter geral,  ir extraindo a informação que o cliente lhe vai passando sem que este último se dê conta disso. Perante afirmações generalistas por parte do reader, que se aplicam a um vasto numero de pessoas e situações, o cliente tende a validar subjectivamente os detalhes que se lhe apresentam correctos e a esquecer os outros. De igual modo, a leitura corporal e a gestualidade do cliente em muito auxiliam quem “lê”.
Existe todo um manancial de livros, guias e orientações que ensinam um cold reader a profissionalizar-se, in twelve easy lessons.

A cold reading, porém, é feita por todos nós em maior ou menor grau e a inter-influência de todos os aspectos acima referidos é um facto inescapável.  O nosso software interno busca, constantemente, referências, ideias, padrões de comportamento, icons. Quanto maior for o vazio interior, a falta de cultura ou de honestidade e a insegurança pessoal, mais acentuada se torna essa apropriação instantânea e indevida daquilo que no outro pensamos poder acrescentar algo ao que somos (ou parecemos ser), enriquecer a nossa imagem e performance perante a audiência.

Como obviar, então, aos efeitos perniciosos do cold reading?  Creio que só pela consciência, no assumir das nossas reais qualidades e limitações, num sincero e aprofundado exercício constante de humildade e de respeito pelo outro, poderemos consegui-lo. A busca de criatividade que nos habita deverá ser o nosso timoneiro na auto-descoberta. O que existe – o mundo natural, os estudos para o conhecimento, a intuição, os sonhos e tanto mais – está aí para todos. E cada um tem a oportunidade de neles trabalhar, sem necessidade de roubar ao outro palavras, posições, expressão artística.

Tenho demorado toda uma vida a identificar quem é, no meu núcleo mais próximo, declaradamente cold reader. Não é fácil encarar esse facto, em especial quando existem laços de afecto com o outro. Como duro é encararmos as vulnerabilidades que nos tornam presa fácil do cold reader.
Torna-se porém deveras insuportável, até mesmo doloroso, identificar em nós próprios os indícios dessa prática, por vezes inconsciente, mas sempre aparentada da fraude.


domingo, 14 de julho de 2019

LAZER - Outra forma de trabalho


Ando a descansar, à força. Tento aproveitar o que me resta do fim de semana para me entregar a  mim mesma e a uma palavra meia alheia àquilo que a vida me tem permitido: lazer.
A palavra legitima o merecido descanso que pode corresponder a actividades prazenteiras para o ser, no meu caso ler, escrever, remexer os livros, papéis, objectos de culto, estudar as mil e uma coisas que não sei. Ou o jardim que amo e que visito e amparo com a regularidade possível. Como a minha saúde começou a acusar a carga excessiva de trabalho e, sobretudo, o efeito corrosivo de transtornos emocionais, faço um esforço no sentido deste “ócio”, leia-se, apartamento da actividade directamente ligada ao dever e o ganho material para a sobrevivência.
Dormito a espaços regulares, frente ao écran, livro ou simplesmente recostada numa tentativa de meditação – apago zonas de pensamentos sombrios, enraizo-me, faço-me rodear apenas do alívio que as flores me trazem...

Quantas noites escuras da alma ocorrem em cada vida? Já vou na terceira ou quarta, sendo a actual a mais dura de todas. Uma amiga estudante de astrologia disse-me há dias que este período da minha vida, fortemente regido por Saturno e que já dura há anos, corresponde ao maior desafio por que passo nesta vida, mas que o meu mapa indica que a crise terminará no final deste ano. E que a partir de 2020, tudo se iluminará no meu caminho para a transcendência, algo a que a minha alma aspira com todas as forças. Que vou escrever muito mais, que posso até ganhar dinheiro com isso (difícil de acreditar, num país como Portugal e dado o estado colectivo das coisas e das pessoas...)

Enfim, é preciso acreditar nalguma coisa. Só me tenho a mim própria (que vou descobrindo o que sou), este ser mutante em busca da alma encantatória de dias de paz e de coerência.
Por ora, tenho o resto de um domingo vivido dentro de portas – está um braseiro lá fora -, o meu doente adormecido até pelo menos final da tarde, o silêncio da casa grande, que continua à venda, esvaziada da famíia que criei portanto vazia de afectos, as saudades das minhas crianças que já me parecem pertencer a outra encarnação.
Sinto os olhos mortos ante tanta e bela arte que muito significou para mim no passado. Tudo tão estranho, desconhecido...
Mais tarde, vou ter de preparar o dia de trabalho de amanhã, que disso não me livro. Cozinhar algo para o meu doente, auscultar o que diz o ar ao cair da noite alentejana e inventar outra crença qualquer para me ir aguentando.
Ah, carpe diem...descanso, lazer, reinvenção/redescoberta do propósito da vida.

Quem sabe...
...se ninguém sabe nada?

Quadro: Tarsila do Amaral, "Figura Só"