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quinta-feira, 22 de agosto de 2019

INVISIBILIDADE E AMIGA D'ALMA

Evelyn Williams















“Y ahí estoy yo, creada a pesar de que los otros no me ven.
 Un alma con pechos que nutren. Un ser de la creación.”
Ana Cortinas Payeras



Há uma espécie de invisibilidade na vida real,  semelhante ao bloqueio do outro que as redes sociais actualmente permitem, e que afecta muitos de nós. Este fenómeno prende-se desde logo com o utilitarismo, que é uma espécie de pulsão de morte que tem alastrado impiedosamente pelas nossas sociedades.

Sentires como amor para sempre, lealdade, reverência perante a experiência e a idade, prossecução do conhecimento através do esforço persistente e altruísmo, entre outros, são coisas do passado. Tudo o que é psicologicamente difícil é evitado e o ser humano parece apenas apostado em encenar a felicidade.

Hoje, interessa-nos o que e quem nos é útil, pelo tempo em que tal utilidade funcione. Seja qual for o laço que une as pessoas, desde o encontro ocasional na vida, até ao mais sagrado dos laços: a relação filho-mãe. A nova humanidade foge de problemas emocionais como o diabo da cruz e literalmente bloqueia e apaga (como no facebook) o que a possa fazer pensar, portanto incomodar e que, sobretudo, não seja rentável (útil).

Ora só os afectos e a atenção do outro, alheios a qualquer noção de utilitarismo, nos dão a sensação de sermos visíveis pois o espelhamento daí decorrente é essencial para uma saudável auto-estima e sustentabilidade da construção que qualquer vida humana deve representar. Quando o olhar e a atenção amorosa do outro são desviados do nosso ser, instala-se um sentimento de traição e de abandono difícil de ultrapassar. Tornámo-nos invisíveis para o outro, perdemos a validade.

A minha avó Mariana que hoje, se fosse viva, teria 120 anos, introduziu-me ao conceito de “amiga d’alma”. Ela chamava-me assim e, apesar da minha juventude, essas palavras e o sentir que lhes estava subjacente colaram-se à minha estrutura anímica de forma permanente.  Uma amiga d’alma é alguém que está ligado a ti, para além da tua utilidade e/ou do desentendimento ocasional. O seu olhar, a natureza afectiva e táctil  do laço são fulcrais para a boa estruturação emocional de qualquer ser e para o sentimento de visibilidade ou seja de existência válida e com propósito que todos precisamos de experimentar. Ainda mais:  emana da amiga d’alma uma espécie de permanência que é profundamente reconfortante, num mundo onde se tornou moda dizer que tudo flui. Sim, a vida terrena é fluir mas só o reino dos afectos verdadeiros tem a eternidade assegurada.
É que o afecto flui como mel por entre os escolhos da vida, dulcifica os problemas emocionais e fortifica-nos na coragem para o incontornável encontro com os nossos fantasmas. O afecto manifestado ergue-nos acima da linha de água e confere-nos a elasticidade de movimentos e de aspiração desejáveis para a difícil sobrevivência na Terra.

Mariana Inverno, Notas à Sombra dos Tempos (II)













domingo, 18 de agosto de 2019

SER UTILITÁRIO - Nosce te ipsum

SER UTILITÁRIO
Nosce te ipsum

Por estes dias o espírito parece afastar-se mais e mais das personas e o binómio ser útil=ser “amado” ganha cada vez mais força. Não é que as pessoas sejam apenas más e egoístas e se estejam nas tintas para tudo o que as incomode e que não acarrete algum ganho material (imediato, de preferência).
O sistema sob o qual vivemos e respiramos na Terra incentiva  cada vez mais as pessoas a olharem para o seu umbigo e se preocuparem unicamente com a sobrevivência e os interesses de ordem material. O materialismo infiltrou-se habilmente em todos os aspectos da vida e hoje só reina quem tiver valor material. Ou seja, quem possa trocar por notas a atenção e os cuidados de que precisa em qualquer idade, especialmente na velhice.

A propósito, aconselharia a todos que examinassem a sua vida, relacionamentos e comportamento com o seu núcleo mais próximo, incluindo também os  parentes mais pobres, os idosos e os doentes de anos e em consciência tentassem estabelecer o que os tem movido em todas as circunstâncias.
Embora os doentes e os idosos sejam casos extremos, acho igualmente importante estabelecer o que está por detrás das “trocas de amor”, quais as forças em jogo em cada laço.
O que é que eu amo na outra pessoa? A juventude, a beleza física, as oportunidades proporcionadas, o seu poder material, a autoridade que me falta a mim, o talento ou a sabedoria que não possuo, a fraqueza que posso dominar, processo para o qual transfiro o meu vazio interior? A sua submissão aos meus caprichos e/ou necessidades? O facto de representar uma companhia, no meu processo solitário?
Hábito, laço familiar? A lista de possibilidades é infinita...
Não se ama o que se não conhece e, se não nos conhecemos realmente a nós próprios, como podemos ver o outro na sua verdade anímica?


Usamos as palavras amor e amizade de forma muito leviana. Todos sabemos que casa onde haja fartura e vida alegre e ligeira, está sempre cheia de amigos. Se a adversidade e a doença a tocam, os amigos desaparecem como por encanto e o silêncio das paredes é a única companhia de quem fica. Se alguém ficar...

Seria talvez a hora de começar a reflectir sobre o que está por detrás de nós mesmos, enquanto personalidades complexas no jogo da vida. Essa vida, cuja verdadeira essência e propósito continuamos a ignorar.


MARIANA INVERNO, in “Notas a Sombra dos Tempos”