ASSIM SE SENTIA
Quiz chegar antes
da hora mas não consegui. Já soavam as vozes do coro religioso, a figura
apagada de um padre idoso e frágil aproximava-se do altar, a igreja cheia de
gente – pareceu-me que todos tinham voz vibrante e sabiam de cor as preces, as
respostas ao padre na ponta da língua (Corações ao alto, Ele está no meio de
nós, Ele é o nosso Salvador) - tudo em andamento quando encontrei um lugar na
coxia de uma das primeiras filas e os meus olhos a buscaram. Só por ela tinha
vindo, pela dor lancinante que lhe adivinhava na alma…o amado irmão, ainda no
vigor da vida, deixara este mundo havia apenas uma semana.
Busquei-a e encontrei-a na figurinha magra e trémula, de joelhos nos degraus de pedra do altar, um véu negro e amplo sobre os cabelos grisalhos.
Havia algo de dramático e pungente no recorte da mulher de negro, a mulher que respirava luto por todos os poros e se distanciara de tudo e de todos, ajoelhada nos degraus de pedra enquanto o ritual prosseguia o seu curso.
Busquei-a e encontrei-a na figurinha magra e trémula, de joelhos nos degraus de pedra do altar, um véu negro e amplo sobre os cabelos grisalhos.
Havia algo de dramático e pungente no recorte da mulher de negro, a mulher que respirava luto por todos os poros e se distanciara de tudo e de todos, ajoelhada nos degraus de pedra enquanto o ritual prosseguia o seu curso.
A missa era por várias almas, mas parecia ter sido encomendada
só para ela que chorava silenciosamente, destituída em definitivo, assim se
sentia, da companhia daquela alma afim, desse amor tão grande, assim se sentia.
As vozes no templo cantavam seguras, piedosas talvez, recitavam
seguras, mecânicas talvez, a conversa com Deus, ora em pé ora sentados e eu de
olhos e coração pregados na figura de negro de costas para todos, ajoelhada na
pedra, distanciada, o seu ser trémulo a marcar posição em relação ao mundo.
Doía demais no interior esfrangalhado, pois aquilo vinha de dentro, das
profundezas, assim se sentia.
A ponto de
desmaiar, trouxeram-na em braços para a primeira fila, para que se sentasse um
pouco, deram-lhe água com açúcar, para que se reanimasse. De família, nem sinal.
Chegara o momento para que eu viera, amparei-a nos meus braços, passei-lhe intuitivamente o conforto do meu coração de mulher aberto à sua dor, as almas encostadas uma à outra, irmãs e cúmplices, apesar do escasso convívio na vida real. Assim se sentia.
Chegara o momento para que eu viera, amparei-a nos meus braços, passei-lhe intuitivamente o conforto do meu coração de mulher aberto à sua dor, as almas encostadas uma à outra, irmãs e cúmplices, apesar do escasso convívio na vida real. Assim se sentia.
Agradecida, um pouco mais consolada, segurava a minha mão no seu
coração aos soluços, triste triste como só os que amam de verdade podem ficar
quando lhes é retirada a companhia dos seus queridos. Tinham vivido juntos toda
a vida, à excepção de um pequeno período em que ele estivera casado, ele era
bom tão bom e morrera nos seus braços. Dizia-me tudo isto a voz fraquinha,
quase inaudível, diziam-mo os olhos baços, quase mortos, as lágrimas que
teimavam em deslizar silenciosas na pele, quase transparente, do rosto desfeito
encostado no meu ombro. Numa só mulher eu vi incorporadas por um segundo todas
as funções – a viúva, a mãe, a irmã e a filha enlutadas – um amor maior que o
mundo, assim se sentia.
Afinal havia mais família. Tinham ficado ao fundo da igreja – os
filhos dela, a mãe. Todos enlutados, pela certa. Mas a milhas de distância
dela, que tinha verdadeiramente amado.
Assim se sentia.
Quadros: Montserrat Gudiol
Obrigada, querida Mariana.
ResponderEliminarNão tenho palavras para lhe dizer o que sinto, não mereço estas palavras, este texto tão sentido e lindo.
Querida amiga, estará sempre no meu coração.
O meu carinho, sempre.
Um beijinho
Isabel