Baixinha, rosto doce, feições regulares e aqueles
olhos amendoados de um verde raro, como que temperado de matéria apaziguante.
Recordo-te como eras então, Regina. Minha companheira de turma da primeira à
quarta classe, sempre juntas, partilhávamos o recreio, o lanche, as
confidências, chamavam-nos a Pequena e a Grande, pelo contraste das silhuetas.
(Bom sentir-te aqui na carteira, ao meu lado. A
intimidade dos papelinhos trocados, à revelia do olhar atento da professora,
com as últimas lá de casa, os apertos de coração perante as injustiças dos
adultos, o meu poema de ontem à noite que te adoça ainda mais o olhar. "Não descanso enquanto não publicares, este é
uma obra de arte, sente-se mesmo." Ajudo-te nas redacções, apaziguas-me
neste fogo que sempre me leva a ferver em pouca água. Fala, rapariga, vamos apanhar azedas. Sabemos tudo uma da outra e
sonhamos com o vasto mundo que de certeza existe mais além das fronteiras
salazarianas. Um dia, havemos de fazer e de acontecer. Mudar o mundo, publicar
livros, salvar os pecadores, viajar e ficar em hotéis. Paris, Londres, Nova
Iorque.
Juntas, exame de admissão ao liceu e à escola
técnica, de autocarro sozinhas pela primeira vez. "Vamos sempre ficar juntas, até ao fim da vida, fazer coisas
fantásticas." Melhor que todos, a Regina. Que a mãe e o pai, que os manos,
que toda a gente. Íntima, perto deste meu agreste coração selvagem, ela
percebe, acalma, ajuda a recompor a atitude, espelha com entusiasmo a
incipiente poesia que produzo, às carradas.)
O exame de admissão separou-nos como uma foice cruel.
Não entrou para o liceu, era uma aluna apenas mediana. Apanhávamos depois o
mesmo autocarro, mas tínhamos de sair em paragens diferentes. Os caminhos
foram-se apartando, até ao quase esquecimento.
Quase, mas não totalmente. Voltas sempre, dentro de
mim nas horas mais turbulentas, nos grandes impasses, se eu tivesse uma Regina
para me amparar… Se eu pudesse contar com a sua tranquila atenção ao fogo do
meu discurso, o olhar de fim de tarde estival a amornar os meus excessos…
Um dia vejo-te, depois do reencontro no facebook.
Almoço na Rua Braamcamp, perto do escritório. Tão igual a ti mesma, pequenina e
regular, umas poucas rugas, quase nada, mas tão longe de ti em mim. Palavras
que não saem, em nenhuma de nós. O teu olhar já não é tranquilizante, vejo-o
parado, sem expressão. Contenho-me. (Não mostres o desapontamento). A custo, lá
vêm as tretas do costume, casamentos, divórcios, as gracinhas dos filhos, o
custo da vida. Não aguento, não é possível!
Disparo, à queima-roupa. "Regina, que te aconteceu, que é feito de ti, irmã da minha alma?"
Por um segundo, o lampejo antigo, o da imagem
guardada desde a infância. Mas não. A voz, num suspiro, mal se ouve.
"Desisti."
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