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quinta-feira, 23 de maio de 2013

TORRE DE MARFIM


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Se é noite, noite é e não quero pensar. À janela da minha torre de marfim espreito a sinuosa probabilidade de me reinventar assim no breu, apesar da lua alta, do tom negro-esverdeado de tudo a perder de vista. Sinto uma omnipotência indecifrável em conexão com algo aqui dentro que não saberei nunca expressar.

Soam grilos, canta o silêncio inescrutável como um voo invisível, um sonho de que te não lembras apesar dos esforços. E as fragrâncias da noite, vagas e adocicadas, viajam entre mim e o infinito escuro para onde me quero projector. A mim ou a isto aqui dentro  que não parece encontrar porto onde se espraie, horizonte adequado.

Questão de escalas, talvez, diz-me o poema a querer erguer-se. Das janelas das torres de marfim isoladas em impossíveis descampados tecem-se, à noite, redes com fios de luar, estruturas prateadas de apoio a voos secretos que nos levem para além de nós mesmos. Posso construir uma corola mântrica, fragrante como a noite, aconchegar os meus sonhos, conhecidos e por conhecer, no coração da flor espacial e deixar-me ir como um pedaço de brisa, milagrosamente conduzida pelo equilíbrio das forças e anti-forças universais.
Movimento elíptico ascendente perfumado silencioso invisível. Inexistente.
Continuo à janela da torre de marfim, ancorada numa subjectividade inexpressável, bate bate coração que a noite é longa e nada se revela. Chamam-me da base vozes sem sentido, em ziguezague pelo ar acima, pedaços de tesoura enferrujada, contrárias ao poema que se formava, ao génio na lâmpada de Aladino que já se esfuma…



Vem, é tarde, tens de dormir. Amanhã há trabalho.



Nada mais desliza em mim, abortado o momento glorioso que o não chegou a ser.

Lá fora, nem os grilos soam agora. Parece-me.

Também o luar se foi. Parece-me.

Cai incessante uma chuva miudinha.
Sem som.

Quadro: Gertrude Abercrombie, "Torre de Marfim"

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