Foto: Miguel Medalha |
Desolada, busco alívio
na palavra. Dentro de mim ressoam ecos de Mahler, como se uma fria correnteza
de lágrimas silenciosas deslizasse, enfim, por uma rota paralela à dos chakras
e redimisse a dor neles alojada.
Ante o conflito e o
desencontro de almas obviamente próximas, quisera viajar com eficácia até aos
confins dos tempos e compreender as razões do desalinhamento actual. Mas o que
está oculto não se quer mostrar, é essa ainda a natureza da manifestação, a
imagem aparece refractada nas vastas águas, repositório eterno das experiências
da alma.
Álguém,
na minha família, se ressentiu que eu tivesse mencionado numa das minhas
crónicas que o meu pai escolheu partir desta vida, eufemismo para se ter
suicidado, que foi a expressão que então
usei. Quedei atónita ante tal facto!
O
meu pai não foi um ladrão, um assassino, um politico vigarista. E se o tivesse
sido, continuaria a ser o meu pai e assumi-lo-ia como tal, pois não tive outro.
O meu pai foi, na verdade, um homem bom e trabalhador, mas triste e atormentado pelas
invisíveis sombras que sobre ele adejavam como abutres e lhe secavam a alegria,
o viço e a força de viver. Escolheu partir quando tudo se lhe estilhaçava por
dentro e a ignorância geral, oficial e implementada, não lhe pôde valer a não
ser com uma etiqueta de esquizofrénico e fármacos que lhe adormeciam os
sintomas, o que de nada lhe valeu.
Não compreendo por que eu teria de esconder
isto. O meu pai fez com a sua vida o que
conseguiu fazer, faltaram-lhe as forças para a preservar. Isso não me
envergonha. Doeu-me muito quando ocorreu há mais de quatro décadas e, durante
muito tempo, ao caminhar pelas ruas, dava por mim a esperar encontrá-lo na
próxima esquina. Mas sempre respeitei a sua decisão que me ensinou mais do que
se possa pensar. Uma compaixão infinita pelas suas secretas dores inundou a
minha alma e reforçou o meu apoio à Mãe-coragem que lhe sobreviveu.
Era belo o meu pai, ainda que sombrio e
ausente. Complexado pelo que não havia conseguido alcançar na sua difícil vida
num estado fascista, atormentado por uma sensibilidade exacerbada e ausência de
orientação em como gerir a mesma. Não tinha paz interior, apesar da muralha de
força que a sua mulher representava e dos quatro filhos saudáveis e
inteligentes. Não sabia como, nem ninguém o conseguiu ajudar a dissipar as
trevas que sobre ele se abateram.
Todos
escolhemos, no fundo, o que fazer com as nossas vidas. O meu pai pôs fim à sua,
na flor da idade, Eu, que herdei dele a fronte abaulada e o coração mole, opto
por exorcisar pela palavra o que me vai dentro e tentar disciplinar o coração
tenro para que a minha soberania pessoal seja respeitada, O meu parente prefere
ostracizar-me, fazer-me desfeitas imperdoáveis, em jeito de “castigo”. Assumo a
dor que isso me causa mas rejeito o “efeito castigo”. Nutri sempre por ele o
mais profundo afecto mas, antes dele estou eu. Eu, mulher em busca da mulher
integral dentro de mim, eu e a minha verdade possível, eu e a minha busca de
clarificação, eu e a consciência de que somos o que vamos conseguindo ser, que
ninguém é mais importante do que nós e que só ao nosso auto-cumprimento devemos
explicações.
Apesar
das lágrimas, apesar da vida que é breve e se escoa sem as manifestações de amor
que seriam naturais e legítimas, esse é
o meu caminho e a minha opção.
Muito
grata, pai, meu bom e partido pai, por tudo o que me ensinaste, aparentemente
pela negativa.
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