"Um pouco mais de sol - eu era brasa
Um pouco mais de azul - eu era além... "(1)
Viajante do cosmos, pequeno-grande ser tolhido nas malhas de uma dimensão aprisionante, lembra-te que, agrilhoado em ti, vive o gérmen da tua libertação, na espera do teu ser em plenitude. Aprende que tudo é nada e nada é tudo e é contigo e por via de ti que correm todas as coisas eternamente, para cima e para baixo, em círculo e às avessas, tudo corre, viajante, no mesmo sentido único.
Diferente tudo e tudo igual. O Bem que é o Mal e o Mal que é o Bem. O claro que é escuro e o escuro que é claro. Num perpétuo rodopio de efeitos refeitos, desfeitos, trocados...
"Apaga a minha flama, Deus,
Porque ela não serve para viver os dias "(2)
Reacenderei o fogo da minha vida à luz do que sei que vou saber,
sem que o saiba já. Não serve prosseguir do mesmo modo.
Anunciados nos portais da consciência surgem os reconhecíveis
mas trémulos contornos de um novo Amanhã...
Morro transmutada pelo nascer do novo Ser.
"Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer"(3)
Pois eles não sabem que eu sou pássaro, nuvem
e a serpente alada que ascende aos céus.
Cruzo-me nos vazios cósmicos com os filhos das galáxias,
engolem-me vórtices e logo emerjo, coroada pelo bafo das estrelas,
pulsante, ágil, metáfora dos deuses,
canto azul translucente e ignoto
como o que só é pressentido...
Sonho ou escuto o eco inicial,
A voz antes de todas as vozes, se é que o foste...
Nenhuma palavra te define
Mas pulsas, imparável, no diálogo dos átomos que me formam
Na mais singela partícula de todas as coisas,
Pulsas vibrante, ó voz de outrora,
Voz do agora e de todo o porvir,
Misteriosa ligação entre céu e terra.
"Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas"(4)
E por isso me aventuro no inesperado espaço/tempo
Do meu Eu/agora
nos enleados voos da catadupa de estrelas
Eco maior, repetititvo,
bate em uníssono com este meu coração dourado
donde brota imparável um azul líquido e firme
- céu aberto sobre o chakra coronário
dos meus meninos de oiro,
todas as crianças do mundo,
aquela que se me assemelha e a outra
cuja pele ou é noite ou é canela
em doce contraste com a minha.
"Eles nem sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida"(5)
Beijo o coração das coisas, as tenras folhas,
o restolho seco que me ecoa
quando passo, vaga e breve,
sob escolta do espírito Natura
entre as árvores antigas
e me assombro.
"Amo o infinitamente finito
e amo o impossivelmente possível" (6)
Mas nada pode já conter as minhas asas
A voz única do meu ser.
Tudo é passagem, tudo é viagem.
Vivo, respiro, enfim não adiada.
"Mãos de heróis, sem fé, acobardadas
Puseram grades sobre os precipícios"(7)
Abro-me à vida que não sei, ainda que soluçante
na corda farpada que ousa intentar o paro
do passo do meu espírito.
"Sou uma religiosa sem igreja,
Uma reclusa sem convento"(8)
Não tenho livros sagrados que me guiem,
Antes me encontro, dolorosa e firme,
na crista do final de uns tempos já só estertor
Baixai línguas de fogo,
limpai o que era dantes o credo,
talvez em tempos a própria salvação.
Em nada de estanque posso crer
porque a alma segue solta
no fluido impulso da própria vida
a libertar-se das amarras da contenção e do pretenso.
Corro com lobos(9), sou também loba,
como sou pomba e ave e lagartixa, minhoca verde,
casulo e aroma incerto.
Sou sombra e dor e mágoa.
Grito, dentro dos ventos,
alucinada pelos fascinantes contornos
desse impossível que me ensinaram a ignorar.
E se
"Ogivas para o sol vejo-as cerradas"(10)
Se desabam as vigas estruturais
se o meu canto livre sofre a punição dos tempos,
se a fome e a mortandade nos assolam
e nos encombrem o promissor reflexo da luz
com a ilusão da força
Restas-me tu, irmã
Sobras-me tu, irmão
Mãos, corpos, uns olhos da alma
que tudo em tudo agregam
como a própria vida.
Pois
"Não há separação;
Não há diferença
Não há tempo nem espaço
No uno, sagrado e eterno lugar
Em que residimos afectuosamente"(11)
Partilharemos a última fruta
da macieira que alguém se esqueceu de arrancar,
entoaremos o som antigo que nos conforta,
ritmaremos os corpos, assim desvestidos da dor e dos suplícios
Restas-me tu, irmã
Sobras-me tu, irmão
Tu que espelhas a firmeza dos meus passos
e não vacilas, mas és bambu oscilante como eu
na incerta noite em que vivemos.
"Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim
que a terra é curta, que o mar é pouco
que tudo é perto, princípio e fim"(12)
Livrai-me, universo, das vozes que não criam
das que pouco ou nada expressam
e das mecânicas vozes a repetir o de sempre.
Amparai-me no meu destino sem rede
e, se fôr caso disso,
na ausência do pão, da água e dos afectos.
Apoiai o sentido íntimo desta rota
rumo ao mundo que desponta.
"Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos"(13)
Essa és tu, irmã
Aí resides, irmão, na imensurável Força...
Companheiros, pioneiros, conspiradores atentos
de uma ordem nascente, que há-de florir
como leitos de begónias na manhã nova.
Privilégios, amores, o teu destino
"Não os compras, nem te vendes
E os teus gestos não buscam dividendos"(14)
"Antes que tudo em tudo se transforme"(15)
Recupere-se o fôlego e fique inscrito na hora
"Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos"(16)
MARIANA INVERNO,
Junho 2003
NOTAS
(1) Mário de Sá-Carneiro
(2) Clarice Lispector
(3) António Gedeão
(4) Florbela Espanca
(5) António Gedeão
(6) Álvaro de Campos
(7) Mário de Sá-Carneiro
(8) Rosa Leonor Pedro
(9) Referência a título de obra de Clarissa Pinkola Estés
(10) Mário de Sá-Carneiro
(11) Aldegice Machado da Rosa
(12) Fernanda de Castro
(13) Sophia de Mello Breyner
14) Sophia de Mello Breyner
(15) Fernando Pessoa
(16) Sophia de Mello Breyner
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