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domingo, 28 de agosto de 2011

MANIFESTO POÉTICO À ORDEM NASCENTE

"Um pouco mais de sol - eu era brasa
Um pouco mais de azul - eu era além...
"(1)
Viajante do cosmos, pequeno-grande ser tolhido nas malhas de uma dimensão aprisionante, lembra-te que, agrilhoado em ti, vive o gérmen da tua libertação, na espera do teu ser em plenitude. Aprende que tudo é nada e nada é tudo e é contigo e por via de ti que correm todas as coisas eternamente, para cima e para baixo, em círculo e às avessas, tudo corre, viajante, no mesmo sentido único.
Diferente tudo e tudo igual. O Bem que é o Mal e o Mal que é o Bem. O claro que é escuro e o escuro que é claro. Num perpétuo rodopio de efeitos refeitos, desfeitos, trocados...
"
Apaga a minha flama, Deus,
Porque ela não serve para viver os dias
"(2)
Reacenderei o fogo da minha vida à luz do que sei que vou saber,
sem que o saiba já. Não serve prosseguir do mesmo modo.
Anunciados nos portais da consciência surgem os reconhecíveis
mas trémulos contornos de um novo Amanhã...
Morro transmutada pelo nascer do novo Ser.
"
Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer
"(3)
Pois eles não sabem que eu sou pássaro, nuvem
e a serpente alada que ascende aos céus.
Cruzo-me nos vazios cósmicos com os filhos das galáxias,
engolem-me vórtices e logo emerjo, coroada pelo bafo das estrelas,
pulsante, ágil, metáfora dos deuses,
canto azul translucente e ignoto
como o que só é pressentido...
Sonho ou escuto o eco inicial,
A voz antes de todas as vozes, se é que o foste...
Nenhuma palavra te define
Mas pulsas, imparável, no diálogo dos átomos que me formam
Na mais singela partícula de todas as coisas,
Pulsas vibrante, ó voz de outrora,
Voz do agora e de todo o porvir,
Misteriosa ligação entre céu e terra.
"
Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o Sol mais criador,
Mais refulgente a Lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas
"(4)
E por isso me aventuro no inesperado espaço/tempo
Do meu Eu/agora
nos enleados voos da catadupa de estrelas
Eco maior, repetititvo,
bate em uníssono com este meu coração dourado
donde brota imparável um azul líquido e firme
- céu aberto sobre o chakra coronário
dos meus meninos de oiro,
todas as crianças do mundo,
aquela que se me assemelha e a outra
cuja pele ou é noite ou é canela
em doce contraste com a minha.
"
Eles nem sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
"(5)

Beijo o coração das coisas, as tenras folhas,
o restolho seco que me ecoa
quando passo, vaga e breve,
sob escolta do espírito Natura
entre as árvores antigas
e me assombro.

"Amo o infinitamente finito
e amo o impossivelmente possível
" (6)
Mas nada pode já conter as minhas asas
A voz única do meu ser.
Tudo é passagem, tudo é viagem.
Vivo, respiro, enfim não adiada.
"
Mãos de heróis, sem fé, acobardadas
Puseram grades sobre os precipícios
"(7)
Abro-me à vida que não sei, ainda que soluçante
na corda farpada que ousa intentar o paro
do passo do meu espírito.
"
Sou uma religiosa sem igreja,
Uma reclusa sem convento
"(8)
Não tenho livros sagrados que me guiem,
Antes me encontro, dolorosa e firme,
na crista do final de uns tempos já só estertor
Baixai línguas de fogo,
limpai o que era dantes o credo,
talvez em tempos a própria salvação.
Em nada de estanque posso crer
porque a alma segue solta
no fluido impulso da própria vida
a libertar-se das amarras da contenção e do pretenso.
Corro com lobos(9), sou também loba,
como sou pomba e ave e lagartixa, minhoca verde,
casulo e aroma incerto.
Sou sombra e dor e mágoa.
Grito, dentro dos ventos,
alucinada pelos fascinantes contornos
desse impossível que me ensinaram a ignorar.
E se
"Ogivas para o sol vejo-as cerradas"(10)
Se desabam as vigas estruturais
se o meu canto livre sofre a punição dos tempos,
se a fome e a mortandade nos assolam
e nos encombrem o promissor reflexo da luz
com a ilusão da força
Restas-me tu, irmã
Sobras-me tu, irmão
Mãos, corpos, uns olhos da alma
que tudo em tudo agregam
como a própria vida.
Pois
"
Não há separação;
Não há diferença
Não há tempo nem espaço
No uno, sagrado e eterno lugar
Em que residimos afectuosamente
"(11)
Partilharemos a última fruta
da macieira que alguém se esqueceu de arrancar,
entoaremos o som antigo que nos conforta,
ritmaremos os corpos, assim desvestidos da dor e dos suplícios
Restas-me tu, irmã
Sobras-me tu, irmão
Tu que espelhas a firmeza dos meus passos
e não vacilas, mas és bambu oscilante como eu
na incerta noite em que vivemos.
"
Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim
que a terra é curta, que o mar é pouco
que tudo é perto, princípio e fim
"(12)
Livrai-me, universo, das vozes que não criam
das que pouco ou nada expressam
e das mecânicas vozes a repetir o de sempre.
Amparai-me no meu destino sem rede
e, se fôr caso disso,
na ausência do pão, da água e dos afectos.
Apoiai o sentido íntimo desta rota
rumo ao mundo que desponta.
"
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
"(13)
Essa és tu, irmã
Aí resides, irmão, na imensurável Força...
Companheiros, pioneiros, conspiradores atentos
de uma ordem nascente, que há-de florir
como leitos de begónias na manhã nova.
Privilégios, amores, o teu destino
"
Não os compras, nem te vendes
E os teus gestos não buscam dividendos
"(14)

"Antes que tudo em tudo se transforme"(15)
Recupere-se o fôlego e fique inscrito na hora
"
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos
"(16)

MARIANA INVERNO,
Junho 2003


NOTAS
(1) Mário de Sá-Carneiro
(2) Clarice Lispector
(3) António Gedeão
(4) Florbela Espanca
(5) António Gedeão
(6) Álvaro de Campos
(7) Mário de Sá-Carneiro
(8) Rosa Leonor Pedro
(9) Referência a título de obra de Clarissa Pinkola Estés
(10) Mário de Sá-Carneiro
(11) Aldegice Machado da Rosa
(12) Fernanda de Castro
(13) Sophia de Mello Breyner
14) Sophia de Mello Breyner
(15) Fernando Pessoa
(16) Sophia de Mello Breyner

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