A
voz soava enérgica e bem timbrada, apesar da idade. Num programa da manhã, da
Antena 1, que oiço por vezes enquanto faço outras coisas. É popular, pois os
ouvintes podem expressar ali as suas opiniões sobre temas que, em geral, têm
alguma profundidade
Ouvi
muitas outras vozes nesse programa: na sua maioria, foram queixas sobre as
dificuldades da vida, particularmente na velhice, falta de saúde, de cuidados,
falta de dinheiro, indiferença da família.
Mas
aquela voz destacou-se das outras pela energia, pela força e coerência que
irradiava. Falou com rigor e precisão das suas dificuldades, os magros troco
difíceis de juntar para comprar um
coelhinho para domingo de Páscoa que ao bife não consigo chegar.
E
os trocos que tinha não foram suficientes. Ainda
fiquei a dever no talho €1,84. Já
está ali em cima do aparador para o ir pagar. Fiam-me porque, apesar de pobre,
sabem que sou de contas.
Falou
longamente, com muitos detalhes. Uma certa autoridade natural impedia o locutor
de a interromper, como é frequente em programas como este com o tempo contado.
Falou,
falou muito a senhora idosa e só. A senhora a padecer das maleitas próprias da
idade, sem meios para fazer face às necessidades básicas de saúde e bem estar,
dados os cortes nas pensões, nos subsídios complementares, os impostos, os
impostos que crescem e levam tudo. Não há
direito que nos façam isto! A gente não temos culpa de ainda não ter morrido.
Baque.
Coração apertado. Indignação. Alma em fogo.
Mas
que mundo é este, que raio de civilização é esta que pretensamente construímos
se, no ocaso da vida, um ser humano – que já não produz riqueza palpável –
sente necessidade de se justificar e
como que pedir desculpa por continuar vivo?
Sebastião Salgado |
Que
esperança pode ser a nossa, que fé podemos nutrir, de que tamanho, cor,
fragrância é a consciência de uma sociedade que empurra os seus anciãos para a
indignidade de uma vida miserável, os atira para uma solidão escabrosa e ainda
por cima os faz sentir culpados pelo fardo e pela despesa que representam para
o estado e para as famílias?
Não
quero pactuar com este mundo obsceno, recuso-me à heresia de não venerar a vida
que se apaga mas cuja trémula chama
é o sinal inequívoco de um
caminho feito, de muitos esforços e afectos distribuídos, de mais uma tentativa
de avançar. Em retrospectiva, talvez já só um postulado, mas amplamente
reconhecível pela alma.
Amén.
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