De repente é como se tivesse mudado de câmara. De ares, de tempo. Deixaram as
coisas habituais de fazer sentido e quase nem me lembro de quem fui.
Parece que tudo deixou de obedecer a planos, o peso do aleatório
cresce sem cessar e a incerteza inerente à vida, avivada e generalizada,
propaga-se como doença contagiosa pelos meus dias. Os meus e os de toda a gente
com quem partilho esta estada na Terra. Parece que tudo pode acontecer e que
tudo, mesmo o aviltante, tem direito a ser legitimado.
A partir da última parte do século passado, as religiões e as
ideologias começaram a desabar e, em seu lugar, tem-se vindo a instalar uma
subterrânea incredulidade (e passividade) face à degeneração política, aos
desequilíbrios económicos e sociais e aquele fundo cinzento e triste, resultado
do desaparecimento gradual dos benefícios do estado social que tanto sangue, suor
e lágrimas custou a muitos de nós e sobretudo aos que nos precederam.
A ética é uma coisa a fingir, um simulacro-engana-tolos, e a todas as prioridades se impõe a estatística e o cifrão.
A ética é uma coisa a fingir, um simulacro-engana-tolos, e a todas as prioridades se impõe a estatística e o cifrão.
Há dias recebi uma notificação registada informando-me de que uma
renda que a minha empresa paga ao senhorio estava penhorada, que a empresa
passava a ser fiel depositária dos
dinheiros a partir daí, tinha x dias para responder ou era considerada
consentânea da situação contractual invocada e que tinha por conseguinte a
obrigação de, no portal das finanças, procurar
a forma de liquidar o pagamento a favor da autoridade estatal. Decorria
esta situação do facto de o meu senhorio não ter ainda pago as custas de um
processo que contra si decorre.
Em primeiro lugar, eu não sou nem desejo ser cobradora do estado
(de algum modo, isto traz-me à memória outros tempos politicos, em que não se
confiava nem na própria sombra).
Em segundo lugar, não quero entrar, ainda por cima à força, na vida
privada do meu senhorio, ficar a saber das suas dívidas pessoais, pois isso só
a ele lhe diz respeito e faz parte da sua privacidade.
Depois, não tenho que ocupar a minha sobrecarregada cabeça nem gastar o meu precioso tempo a executar tarefas que cabem ao estado e pelas quais não sou paga. Pior ainda, posso vir a ser penalizada se não cumprir à letra e atempadamente com as instruções recebidas.
Depois, não tenho que ocupar a minha sobrecarregada cabeça nem gastar o meu precioso tempo a executar tarefas que cabem ao estado e pelas quais não sou paga. Pior ainda, posso vir a ser penalizada se não cumprir à letra e atempadamente com as instruções recebidas.
Desloquei-me, por consequência, a uma repartição de finanças a fim
de apresentar o meu protesto. A funcionária que me atendeu deu duas vezes a
volta à notificação e, com um olhar meio perdido, aconselhou-me a entregar ao
meu contabilista para que resolvesse. Disse-lhe que era eu a responsável maxima
da empresa e que queria compreender o
porquê de uma mensagem tão desconexa. Levou-me à chefe, amável e um pouco mais
bem informada. Convidou-me a sentar e, virando o écran na minha direcção,
localizou o assunto. Fiquei a saber que o meu senhorio não pagou o IMI das suas
propriedades e que, como tal, está a decorrer um processo contra ele. Que este
montante se refere às custas (o processo iniciou-se em Julho e estamos em
Agosto!!) e que a empresa tem de tirar da renda o que ele não pagou e entregá-lo
ao estado.
Reiterei o meu protesto, não me compete saber o que o meu senhorio
paga ou deixa de pagar, muito menos ser cobradora à borla das suas dívidas.
Olhar condescendente: “É a lei, minha senhora!”
Não, minha senhora, não é a lei, é a interpretação abusiva da
mesma, é o aproveitamento da ignorância das pessoas, da passividade instalada,
da nossa falta de tempo e de meios para nos queixarmos a instâncias mais altas,
de lutarmos nos tribunais pelos nossos direitos, de exigirmos tribunais isentos
e imparciais.
Como todos os outros cidadãos, e não obstante todos os meus
protestos, também eu vou “cumprir”, porque estou tão metida na teia como todos
os outros e não disponho de mais tempo e energia para lutar por uma alteração
que jamais viria com a rapidez desejada.
Mas deixo aqui o testemunho de que me sinto em traição aos meus
princípios fundamentais e que sou cúmplice consciente de comportamentos que abomino.
Contribuição frouxa, bem sei, para um problema magno e que alastra
todos os dias. Tristemente, não me sinto capaz de fazer mais nada, de momento.
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