Lá teve de ir.
Ao médico, (aonde nunca vai),
dada a incontornável pressão das circunstâncias e dos familiares.
Foi de tarde, neste Maio de
tempo inseguro, chuvas extemporâneas e até mesmo granizo, numa incongruência
pegada, cachos de flores a brotarem por todo o lado.
Maria de São José chegou um
pouco antes da hora, estavam ainda só dois ou três pacientes na sala de espera
neutra e minimalista cuja única decoração era um girassol solitário colocado
meio de esguelha numa jarra demasiado larga.
Sentou-se na poltrona mais
próxima da porta, como se isso pudesse acelerar a sua saída do local, e viu de
novo os emails no iPhone.
Era apenas uma consulta de
rotina, tudo estaria certamente em ordem. A remissão acontecera quatro anos
antes, de forma inexplicável para a medicina – sem quimio, radio, sem
operações.
Às vezes abre-se dentro de
nós um riso amplo e rasgado, uma janela de luz intensa e gloriosa na manhã
clara do nosso contentamento, em claro desafio
às normas que nos passaram e à lógica e, como por encanto apresenta-se o
inesperado, o místico cenário do milagre.
Assim acontecera com ela,
alguns anos atrás, quando lhe fora diagnosticada a doença. Talvez que a São
José nunca tenha acreditado que a tinha, nunca lhe tenha dado força, digamos
que cantou sempre em vez de chorar e seguiu em frente. Pensava nisso agora,
naquela sala de espera, sorria para dentro de qualquer coisa em si ao pensar
que no próximo ano seria o ultimo check up. Livre, depois.
Entraram mais duas pessoas,
um homem magro precocemente envelhecido que se afundou, solitário, num sofá
junto à janela do outro lado da sala e a rapariga, jovem e sorridente, que se sentou com uma postura
elegante mas desafectada muito perto dela. Os olhos, de um verde claro e
luminoso, sorriam-lhe.
Não deveria ter mais de vinte
e tal anos. Alta e esbelta, vestia uns blue jeans muito apertadinhos, como
agora se usa, e um casaquinho de linho rosa pálido com top a condizer. Sobre os
cabelos alourados, presos atrás num mono, exibia um chapéuzinho delicioso,
daqueles que vemos nas lojas da moda e
que nunca compramos pois, hoje em dia, chapéu parece só ser moda na passerelle.
A São José não conseguia
tirar os olhos dele, do chapelinho. Ficava tão bem à jovem que, se ela se
alheasse da indumentária, podia integrar aquele rosto e o respectivo chapéu num
quadro do princípio do séculoXX, com laivos impressionistas.
A pequena sorria, dando-se
certamente conta do fascínio da outra.
“Fica-lhe muito bem, tão bem
que, se fosse a si, não o tirava nem para dormir” atreveu-se.
A jovem continuou a sorrir
mas algo indizível parecia ter estancado
nela por momentos. A Maria de São José receou, por segundos, ter sido demasiado
directa mas sentia-se à vontade, dada a dua idade, para fazer comentários desta ordem. Além disso,
desprendia-se da rapariga uma auréola de energia suave e amigável, muito
cativante.
Contudo, mal sabia ela a
implicação do que acabara de dizer.
“Olhe, seria realmente bom
não ter de o tirar nunca…” disse, numa voz pausada e, de forma inesperada, com
aquele jeito elegantemente simples que a seduzira logo, levou a mão ao
chapéu, retirou-o e virou-se lentamente
de costas. Na parte superior da cabeça, uma área extensa e descoberta, onde
apenas despontavam cabelos de tamanho mínimo, apresentava uma longa cicatriz.
Foram só uns segundos de
silêncio, mas à São José pareceu-lhe uma eternidade até que a outra começasse a
dizer alguma coisa.. Chamava-se Leonor e tinha sido operada recentemente a um
tumor na cabeça. Maligno, veio a saber-se depois.
A espera pelas consultas foi
longa, deu tempo para que os corações se abrissem um ao outro. Pequenas chispas
de cumplicidade imperiosa cruzaram os ares, a São José sentia-se perplexa e
maravilhada pela alegria de viver da Leonor, a sua aceitação serena do que lhe
acontecera. Pois com a jovem não tinha havido nenhuma remissão espectacular e
inexplicável, a vida não abrira nenhuma
janela transcendente para o milagre, como no seu caso. Mas fornecera-lhe um
chapéu. Um chapéu elegante, rosa pálido, que lhe ficava a matar e sob o qual
ela guardava o horrendo testemunho da sua dolorosa prova.
Leonor falou dos seus
projectos, do noivo que se afastara por não conseguir lidar com a doença, da
tese de doutoramento ainda inacabada sobre a emergência dos direitos das mulheres
nos países em desenvolvimento. Ia visitar na semana seguinte a avó velhinha e
levar-lhe de surpresa uma torta de ameixas em calda que aprendera a fazer com
ela.
Estupefacta ante este amor à
vida e aos outros, tendo tal espada de Dámocles sobre a cabeça, São José
acarinhou Leonor dentro de si com o abraço mais cálido e penetrante de que se
sentia capaz. Trocaram telefones, emails e combinaram encontrar-se em breve.
Tudo devido a uma dor maior,
escondida debaixo de um chapéu francês, rosa pálido e coquette.
Mariana Inverno, estou sem palavras! Que lindeza de conto! Quanta sensibilidade, quanta delicadeza! Sou sua fã e sempre me encanto com a riqueza dos seus textos, a sabedoria aliada com a elegância. Você me emocionou profundamente. Muito obrigada.
ResponderEliminarUm bem haja.
Um abraço desde o coração do Brasil
Maria José Sá
Querida Maria Maria: a sua reacção ao meu pequeno conto foi o melhor presente! E chama-se Maria José!!
ResponderEliminarEsta história sua, que ficcionei obviamente, tocou muito a minha alma e levou-me a sentir uma vez mais como estamos todos conectados e como, debaixo de um chapéu (em sentido literal e figurado), muita coisa não aparente se pode esconder.
Grata por gostar dos meus textos. Acabei de publicar "Notas à Sombra dos Tempos"(tem página no facebook) que vou também tentar editar no Brasil. Tenho tido muitas provas de carinho e apreciação de brasileiros pela minha escrita e gosto muito do vosso coração ardente.
Um abraço e até sempre
Mariana