"...há gente bem pior no panteão"
Vasco Graça Moura
Vasco Graça Moura
Estou
para aqui a pensar no Eusébio.
Nunca o
conheci pessoalmente, não gosto de futebol e tudo quanto sei sobre o assunto
entra-me à força pelo écran da televisão ou pela rádio onde as notícias
futebolísticas têm, em geral, honras de abertura.
Do
Eusébio eu ouvia falar quando era pequena, pois o meu pai, benfiquista
ferrenho, idolatrava-o. Mas agora há muito que não sabia nada sobre ele.
Tudo
quanto escutei, através de terceiros, sobre o Pantera Negra levaram-me, como a
toda a gente, a sentir simpatia pelo homem de qualidades raras hoje em dia,
como a humildade, o sentido de fairplay, a doçura de alma, a leal entrega toda
a vida a um clube e aquilo a que os ingleses chamam de friendliness, uma palavra que não tem correspondência directa na
nossa língua mas que implica uma atitude essencial de amigo em relação a todos
e a todas as coisas na vida.
Fiquei no
entanto surpreendida pela reacção geral ao falecimento de Eusébio, captada que
me senti pelas imagens das ruas apinhadas de gente aplaudindo emocionada a
passagem dos restos mortais do futebolista, as múltiplas declarações carregadas
de emoção de politicos, empresários, dirigentes e responsáveis a todos os
níveis. A volta olímpica ao Estádio da Luz sonhada pelo próprio ainda em vida
uniu milhares visivelmente de coração destroçado pela partida prematura de
Eusébio. E a viagem final até ao cemitério do Lumiar a rebentar pelas costuras
de gente que, encharcada pela chuva impiedosa que caía na noite a baixar sobre
Lisboa, não arredou pé e em muito dificultou o enterro – provisório, estou
certa, pois esperam o futebolista honras de Panteão – essa viagem soou-me
acompanhada de um grande e desesperado grito anímico, como se um pedaço da res
colectiva tivesse sido arrancado injustamente e antes de tempo àquilo a que
chamamos a alma de Portugal.
De algum
modo, como no seu momento aconteceu com a princesa Diana, o povo português
encontrou na morte de Eusébio e na sua impecável reputação – ainda por cima nem
foi nunca rico – o pretexto perfeito para chorar a sua grande dor colectiva,
uma catarse perfeita pela mágoa dos tempos que passam, cruelmente
materialistas, destituídos de ideais e amor ao outro. Eusébio está rapidamente
a ser elevado à categoria de deus, de memória referencial do que é ser
universal, consensual e português, no melhor sentido. E isto acontece também
com a maioria que nunca o viu jogar mas porque, no desértico esvaziamento de
ideais, de princípios nobres, no empobrecimento geral da população a todos os
níveis, encontra no crescente mito de Eusébio uma muleta perfeita para chorar
por si mesma e de algum modo nutrir-se acarinhando um culto novo de retorno à
simplicidade e ao amor entre todos os seres humanos.
Todo lo
explican con cuentos escreveu com genialidade o poeta Léon Felipe. Este é um
conto novo, fresquinho, a que os portugueses se agarraram com desespero. As leituras podem
ser múltiplas, mas convem manter as proporções para escapar à insanidade que ameaça instalar-se.
Paz à
alma de um homem simples e bom que aconteceu ter sido um futebolista de génio, num tempo em que as coisas eram
mais verdadeiras, mais próximas do coração da gente.
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