Hoje vou-te escrever como nunca te escrevi. Desfiz o penteado,
untei-me de coragem e de franqueza e, encostada na velha chaise-longue, cor dos
trigais por esta altura do ano, decidi falar sem nexo.
É capaz de ser a melhor maneira, não achas? Quando procuramos demasiadamente fazer sentido sai tudo muito rígido e, hoje, a minha palavra tem de desabrochar da respiração profunda, dum lugar qualquer ainda não referenciado dentro de mim mas onde o sentir cantarola como uma avezinha ligeira em manhã primaveril. Estranho que fale na primavera, tempo de ressurgimento e de vida, pois sinto-me assim tão cansada e gostaria de ficar muito tempo aqui recostada, o cafetã de seda a acariciar-me o corpo e as palavras a sairem como pingos espaçados de uma fonte a redescobrir com dificuldade a sua função. Miro os pés desnudos, as unhas pintadas na perfeição de um grená que vai bem com as minhas roupas de mulher grisalha. Vai bem com o verão, também, acrescenta-lhe cor.
É capaz de ser a melhor maneira, não achas? Quando procuramos demasiadamente fazer sentido sai tudo muito rígido e, hoje, a minha palavra tem de desabrochar da respiração profunda, dum lugar qualquer ainda não referenciado dentro de mim mas onde o sentir cantarola como uma avezinha ligeira em manhã primaveril. Estranho que fale na primavera, tempo de ressurgimento e de vida, pois sinto-me assim tão cansada e gostaria de ficar muito tempo aqui recostada, o cafetã de seda a acariciar-me o corpo e as palavras a sairem como pingos espaçados de uma fonte a redescobrir com dificuldade a sua função. Miro os pés desnudos, as unhas pintadas na perfeição de um grená que vai bem com as minhas roupas de mulher grisalha. Vai bem com o verão, também, acrescenta-lhe cor.
Dizem que é bom retrospectivar, ver o filme para trás, fazer
balanços. Não consigo nada disso, as imagens sobrepõem-se, quem chegou e quem
partiu, quem ficou, o que se perdeu e o eventual ganho. As cabeças louras das crianças
a ensolararem-me os dias, o rodopio das viagens, mundos e mundos, choros e a
ebulição das grandes cidades, o que se ganhou e o que se perdeu, o que ficou
para trás… A tua presença discreta, mulher-mãe, a tua inabalável fortaleza,
tantos dias e horas e celebrações, os momentos de aperto, as palavras a ficarem
para trás…
Houve que ganhar a vida e… se a vida se perdeu?
Tudo revolteia, dança surrealista de contrários, não há norte para onde me vire, viajo enfim pelo caos da minha vida, pelo imperativo do dever que norteou a minha vida e declaro-me cansada. Cansada quer dizer esgotada. E esgotada quer dizer que estamos num beco sem saída, a minha vida e eu. Mas não há becos sem saída, ou haverá?
Tudo revolteia, dança surrealista de contrários, não há norte para onde me vire, viajo enfim pelo caos da minha vida, pelo imperativo do dever que norteou a minha vida e declaro-me cansada. Cansada quer dizer esgotada. E esgotada quer dizer que estamos num beco sem saída, a minha vida e eu. Mas não há becos sem saída, ou haverá?
Olho outra vez os meus pés que se mantiveram jovens, apesar da
idade, as mãos onde ela é mais evidente. O tempo está a ser contado ao contrário,
à Inescapável Companheira já se lhe adivinham os contornos, será que me consigo
cumprir…
É verdade que tentei em paralelo, mas o sonho era demasiado
grande para o cenário, os
personagens insuficientes, ninguém pode viver ou cumprir o que só tu sabes.
Não há balanço possível. Aguenta-te, mulher, na corda bamba das
tuas circunstâncias, vive o melhor que souberes a desnorteada hora da reflexão,
acarinha as palavras a jorrar dos teus poros como água sagrada, escrutiniza os
dias com a memória que te consome, derrama, mulher, derrama na folha em branco
os secretos impulsos tanto tempo adiados.
Anoiteceu, entretanto. Vejo estrelas, aos milhões, pelas janelas
amplas, abertas dia e noite. A Lua é um mundo enorme, redondo, amarelado, ali a
rolar para trás do monte.
Aperta-me nos teus braços, se puderes, aonde quer que estejas.
Não digas nada, deixa-me sentir apenas que entendes a minha loucura, que me
consentes assim.
Quadro: Francine van Hove
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