Longas caminhadas pela cidade grande. É preciso, diz o
médico, a recuperação disso depende.
Andar assim só pela cidade grande, sem ter outro objectivo
que não seja o caminhar, espécie de substituto da fisioterapia que
habitualmente se sucede às cirurgias, andar assim torna-se um exercício
interessante de recolhimento pessoal no meio das multidões.
Esta é uma cidade cheia de gente obcecada com gente obcecada
consigo mesma. Basta ver a fealdade das vestimentas, o desleixo pessoal,
olhares apagados em busca de um efeito qualquer à superfície, tudo à
superfície, tudo na periferia de cada ser. Os ténis, os jeans rotos (custam
mais caro, assim), cabelos desgrenhados e de cores variadas (do vermelho ao
platinado passando pelo azul) e as capas das revistas populares focadas nos
Beckhams deste mundo, nos seus óculos escuros, filharada, designer (?!) clothes e a
altura dos saltos da Victoria.
Toda a gente corre, não sei bem para onde,
cheira mal nas ruas (sempre tive um olfacto muito sensível ou… será que não se
lavam?) e não há conteúdo em parte alguma. Nem nos gestos, nem nos interesses,
nem nos anúncios, lojas, conversas de café, olhos das pessoas e até nos livros
se nota hoje um abuso imenso dessa falta de consistência, de verdadeiro miolo.
Knightsbridge foi tomada de assalto pelos árabes e está hoje irreconhecível.
Hipocrisia e aparência houve sempre, mas acho que apesar de tudo preferia a de
antigamente. Sentia-se a cultura de fundo, sentia-se um English way of life que tinha o seu quê de interessante. Hoje, em
lugares como Knightsbridge por onde se passeiam multidões de árabes muitas
vezes integrando mulheres ainda completamente veladas, com chandor, mascara e
tudo, hoje é como se eu sentisse apenas só sombras, resquícios de pessoas que
se desligaram do mais importante nas suas culturas respectivas e se arrastam,
preguiçosamente, atrás daquilo que o muito dinheiro lhes compra. Gente híbrida,
desenraizada, o cérebro gorduroso utilizado talvez a um por cento do seu
potencial.
Nas lojas caras, Harrods e companhia, os empregados, em
geral jovens e inexperientes (saem mais baratos à corporação) papagueiam a
cassete que lhes impigiram no treino de dia e meio antes de entrarem ao serviço.
Miram-me com olhos de carneiro mal morto, completamente bloqueados, quando a
pergunta sai do rame rame e repetem de forma robótica uma das respostas
aprendidas no tal curso inicial.
Tudo caro, obscenamente caríssimo, destinado a bolsos bem
recheados.
Só me resta, por isso mesmo, recolher-me em mim, nos meus
passos, conectar-me para cima, pelo menos para cima de tudo isto, onde ainda
haja vida que se possa chamar como tal.
E continuar a caminhar.
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