RECORDANDO ANITA
Para a Anita, minha Mãe já partida
e para a Ana Cortiñas Payeras, para cuja
dor o meu coração de mulher-irmã se abre
Correspondias ao de leve com os lábios finos pregados, apenas
entreabertos no centro por onde passava o fino sopro da vida que te restava.
Correspondias assim aos meus beijos, aos carinhos desvelados das minha mãos
feitas mãos de mãe para a Mãe que se apagava, serena e dorida, espasmos de
olvido a ensombrarem as últimas horas, como se nada daquilo fizesse sentido,
algo atraiçoava o que sempre souberas, como podia ser?
Tudo eram susurros à volta do quarto imaculadamente
conservado, as tuas flores, as fragrâncias que tu amavas, os olhos mortiços
seguiam-me lentamente e aos meus sorrisos – todos para ti porque insistia
ainda em injectar algo desta minha
vitalidade no que de ti restava –não me querias decepcionar mas sabias tão bem a inutilidade do esforço,
sabias mas esquecias-te também – a abóboda alentejana apresentava-se alheia às
tuas lembranças, onde estavas, que quadros eram aqueles, como tinhas ido ali
parar, quando regressarias ao lar amado.
E eras outro ser, ninguém já saberia quem tu eras, quem tu
foras, e enquanto o choro interno rasgava sulcos de dor dentro de mim,
mudava-te a fralda entre beijos, bebia as lágrimas da tua vergonha e aconchegava-te, dizia meu amor, minha
querida, descansa agora, estou contigo, estou por aqui, não temas nada.
Não sei dizer como era, o que me assaltava quando te limpava
cuidadosamente a vagina donde o meu corpo havia emergido um dia. Sentia-me de joelhos
dentro de mim, eras de novo por momentos a rapariga de pernas bem feitas que me
carregara no seu ventre com orgulho desusado e me cuidara amorosamente pela
vida fora. Eras também a mulher velha, sapiente, a aceitar com dignidade e
muita dor as voltas velhacas da vida, as
mãos enrugadas artríticas que os meus beijos acarinhavam mais que nunca.
Depois, seguiu-se a rápida curva descendente. Diziam os boletins medicos que
já nada valia a pena, que estava iminente. Oxigénio, morfina, e dentro cá
dentro ainda passeavas comigo pelos cafés, ainda eras a cúmplice da minha vida,
cuidávamos das crianças, faziamos bolos, as festas, as viagens, tratávamos das
plantas, ajudávamo-nos uma à outra, sem censuras nem recriminações, amparo mútuo
nas curvas apertadas. Vi a respiração encurtar-se até que estancou para sempre,
as mãos já roxas ainda nas minhas, o momento sem sentido das frias condolências
do medico a dizer que sim, que era verdade, que a Anita já não estava, já tinha
partido, que o papel do hospital tinha findado
e que agora era tudo com a funerária.
Dentro de mim ergueram-se coros enlouquecidos a cantar a
Mãe, deram voz à minha dor pela dor que ela sofrera, não tanto por ter partido.
Com o passar dos meses renovam-se as lágrimas, tenho tido que
lidar com o que a Anita deixou, acima de tudo com a implacável deterioração
física que o tempo imprime à invencibilidade interna de uma Mãe.
Nesse processo, cada um está dolorosamente só.
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