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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012


RECORDANDO ANITA

Para a Anita, minha Mãe já partida
e para a Ana Cortiñas Payeras, para cuja dor o meu coração  de mulher-irmã se abre


Correspondias ao de leve com os lábios finos pregados, apenas entreabertos no centro por onde passava o fino sopro da vida que te restava. Correspondias assim aos meus beijos, aos carinhos desvelados das minha mãos feitas mãos de mãe para a Mãe que se apagava, serena e dorida, espasmos de olvido a ensombrarem as últimas horas, como se nada daquilo fizesse sentido, algo atraiçoava o que sempre souberas, como podia ser?

Tudo eram susurros à volta do quarto imaculadamente conservado, as tuas flores, as fragrâncias que tu amavas, os olhos mortiços seguiam-me lentamente e aos meus sorrisos – todos para ti porque insistia ainda  em injectar algo desta minha vitalidade no que de ti restava –não me querias decepcionar  mas sabias tão bem a inutilidade do esforço, sabias mas esquecias-te também – a abóboda alentejana apresentava-se alheia às tuas lembranças, onde estavas, que quadros eram aqueles, como tinhas ido ali parar, quando regressarias ao lar amado.
E eras outro ser, ninguém já saberia quem tu eras, quem tu foras, e enquanto o choro interno rasgava sulcos de dor dentro de mim, mudava-te a fralda entre beijos, bebia as lágrimas da tua vergonha  e aconchegava-te, dizia meu amor, minha querida, descansa agora, estou contigo, estou por aqui, não temas nada.
Não sei dizer como era, o que me assaltava quando te limpava cuidadosamente a vagina donde o meu corpo havia emergido um dia. Sentia-me de joelhos dentro de mim, eras de novo por momentos a rapariga de pernas bem feitas que me carregara no seu ventre com orgulho desusado e me cuidara amorosamente pela vida fora. Eras também a mulher velha, sapiente, a aceitar com dignidade e muita dor as voltas velhacas da vida, as  mãos enrugadas artríticas que os meus beijos acarinhavam mais que nunca.

Depois, seguiu-se a rápida curva  descendente. Diziam os boletins medicos que já nada valia a pena, que estava iminente. Oxigénio, morfina, e dentro cá dentro ainda passeavas comigo pelos cafés, ainda eras a cúmplice da minha vida, cuidávamos das crianças, faziamos bolos, as festas, as viagens, tratávamos das plantas, ajudávamo-nos uma à outra, sem censuras nem recriminações, amparo mútuo nas curvas apertadas. Vi a respiração encurtar-se até que estancou para sempre, as mãos já roxas ainda nas minhas, o momento sem sentido das frias condolências do medico a dizer que sim, que era verdade, que a Anita já não estava, já tinha partido, que o papel do hospital tinha findado  e que agora era tudo com a funerária.

Dentro de mim ergueram-se coros enlouquecidos a cantar a Mãe, deram voz à minha dor pela dor que ela sofrera, não tanto por ter partido.
Com o passar dos meses renovam-se as lágrimas, tenho tido que lidar com o que a Anita deixou, acima de tudo com a implacável deterioração física que o tempo imprime à invencibilidade interna de uma Mãe.
Nesse processo, cada um está dolorosamente só.

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