BOND –
INSTRUMENTO DA ESCRAVIDÃO
Se é difícil
falar de certas coisas a um determinado nível, mais problemático se torna ainda
tocar pontos de consciência que muitos ainda não alcançaram.
Fui ver o
Skyfall. Grande êxito de bilheteira, aguardado com expectativa pelo mundo dos
adoradores do 007, facturou logo no primeiro fim de semana de exibição 70
milhões de libras. Isto só no Reino Unido. Espera-se que ultrapasse rapidamente
o mais bem sucedido filme da série até hoje, Casino Royale.
Sam Mendes,
o realizador, assegurou-se da utilização de todos os ingredients que vendem um
produto desta ordem: o talento de grandes actores, acção, fantasia, efeitos
especiais espectaculares, armas, morte, violência, machismo, aparatosas perseguições
de carros, dureza, agressividade, velocidade, mulheres que correspondem aos
estereótipos actuais – magrinhas como um alfinete – todas mais ou menos
submetidas ao absurdo herói Bond. Nem M, a patroa do MI6 escapa à regra pois,
sob a mascara da dureza, encobre um fraquinho pelo agente secreto.
E Sam Mendes
dispôs, é claro, de um orçamento ultra-generoso para a sua mediatica obra (200
milhões de dólares Americanos). Apesar de cortado, imagine-se.
Vi o filme
como, hoje em dia, tento fazer tudo na vida.
Em estado de
observação das mensagens passadas e da repercussão que as mesmas possam ter nas
audiências, em especial nas camadas mais jovens e moldáveis.
As
conclusões são inquietantes.
Para aqueles
que disso ainda não tenham consciência, sera bom lembrar que tudo o que nos é
oferecido pelos media (imprensa, cinema, televisão, internet) constitui em
essência um arsenal de instrumentos de (de)formação do carácter pois nele
imprimem poderosos padrões comportamentais e exemplos facilmente integráveis
pelos menos avisados. Ora Skyfall, tal como o nome indica, é um exercício de
abatimento. Abatem-se criaturas humanas, abatem-se carros, casas, abatem-se a
ordem e a segurança públicas. Tudo a uma velocidade ultra-sónica, num guião
pouco transcendente e focado na dualidade – o mundo divide-se entre os bons e
os maus – por onde gravitam o herói Bond e o indispensável vilão, sob o olhar
penetrante e inquieto de M. Rudeza, traição, secretismo e ódio a rodos,
indiferença pelo valor da vida humana e ocasionais pinceladas de cariz sexual
acompanham a rota de um Bond de cabelo à escovinha - mais com ar de agente do
KGB do que do MI6 – sempre a escapar miraculosamente e sem ninguém perceber
como das situações-limite em que se vai envolvendo. Final brutal e sangrento,
com M a deixar-nos para sempre e um Bond a emergir ileso para a promessa de que
voltará.
Nenhuma
criação deve ser vista como separada do seu criador. Ian Fleming, o escritor
que deu vida ao famoso James Bond, foi um homem sofrido, com uma juventude
conturbada e muito álcool e cigarros. Morreu cedo, aos 56 anos, de um ataque de
coração. Durante a Guerra, serviu no Intelligent Service da Marinha Britânica e
essa experiência, à mistura com a sua formação de jornalista foram as
plataformas donde projectou uma espécie de alter ego idealizado e invencível, James Bond - 007, Ordem para Matar!
Fleming pintou Bond com as cores que secretamente desejaria ter possuído, ou
seja, foi da Sombra deste autor que surgiu o agente secreto, enquanto sofria
cada vez mais na sua casa da Jamaica ao tentar dar vida a cada novo livro. O
que se apresenta como traço paradoxal –
ao criar dolorosamente o inabatível Bond o autor auto-destrói-se – é apenas o
resultado de gerar sucesso radicado em padrões de morte e destruição.
Preocupam-me
muitas coisas no mundo de hoje. Acima de tudo, a incapacidade da grande maioria
dos humanos terrestres para terem a percepção crítica do que lhes é impingido e
o questionamento dos efeitos de produtos como este na continuidade da
escravidão humana.
Sem comentários:
Enviar um comentário