REGRESSO AO CENTRO
Torna-te
naquilo que és.
PINDARO
Oiço as vozes, as que atacam e as que se defendem, as que clamam
que tudo é Bem e positivo e luminoso e as que apontam dedos acusatórios entre
si, as que pedem justiça para as suas causas e ideais que a sociedade atira
indiferentemente para segundo plano, para o esquecimento mesmo…
Vejo, como sombras vagas, outras mulheres debatendo-se, no seio do
sofrimento, pela legitimidade da sua voz que há-de ser a certa, a melhor, a
mais credível…
Sinto as marcas de milénios de dor e descentramento desse poder
intrínseco e mágico que o patriarcado abafou, castigou, reprimiu, usurpou e a
subreptícia e encoberta caminhada da fêmea, sobrevivente a qualquer custo,
alheada, confundida, jogada hábilmente contra a outra fêmea, vítima de si mesma
antes de qualquer outra coisa.
Como é que isto se passou, mulheres da Terra? Como é possível que
continuemos a degladiarnos, a trocar palavras frouxas de conteúdo e sentido
duvidoso, iradas umas contra as outras, ressentidas, dominadas por um falso
sentido de superioridade, desleais em relação
ao que mais importa, o regresso a si mesmas?
Sou uma mulher como todas vós. Em mim uiva a loba, Lillith reclama
soberania, a Mãe divina abre os meus braços amorosos para todas as crianças do
mundo e o corpo sensível e maduro acusa estremecente o registo do passo do
tempo. Tentei mimetizar Eva sem grande sucesso e gosto de me sentir bruxa (sem
nada entender de bruxarias). Espero ter aprendido com as minhas quedas e dores
que o importante é respeitar o espírito de quem, debaixo dos nossos olhos, desafia
a nossa paciência com a traição de si mesma…
Busco quase em desespero tornar-me naquilo que verdadeiramente sou,
a única coisa que importa afinal. Talvez tenha de morrer para o que tenho sido,
desfazer-me de todos os simulacros, de todas as manipulações até que a rosa da
essência se revele, como um amanhecer glorioso.
Por ora, a caminhada ainda é incerta. Quero tanto amar-vos,
Mulheres da Terra, como a este centro tenro dentro de mim, manter-vos em mim
num abraço eterno de solidariedade, justiça e bem querer, queria tanto que
abandonassem os caminhos turvos e duvidosos de um passado obscuro para o nosso
género e para a humanidade em geral, não mais permeáveis à intriga fácil, ao
julgamento gratuito e à deslealdade. Nada disso é característico do ser
feminino completo, de consciência expandida, o coração compadecido e generoso
ante o sofrimento alheio.
Tenho dito, irmãs.
Quadro: "As Xamãs", Lena Gal
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