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segunda-feira, 30 de novembro de 2015

AMAR O AMOR

Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer,

amar e malamar,

amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

(...)
Este o nosso destino: amor sem conta,

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

doação ilimitada a uma completa ingratidão,

e na concha vazia do amor a procura medrosa,

paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa

amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drumond de Andrade

Quadro: Lauri Blank


Amar quer quase sempre dizer que aquele que se diz apaixonado por outrem está, antes de tudo, enamorado do próprio amor.


Les Aamants, Magritte
Aquilo que despoleta o amor sentimental está envolvido em mistério, pois as razões usualmente apontadas para tal fenómeno – atracção física, intelectual, química entre os seres e outras – aparecem insuficientes para explicar a radical alteração de comportamento que o ser enamorado apresenta, como se dentro de si tivesse emergido uma outra pessoa: alguém irracional, desinteressado de tudo quanto não tenha a ver com a história sentimental em curso e, acima de tudo, destituído de qualquer objectividade em relação a quem sente amar. A abundância de superlativos e o encantamento com o outro brilham-lhe nos olhos e cantam repetitivamente  nas palavras, pelo menos no capítulo inicial do processo, a imensurável, inultrapassável, inconcebível, fabulosa, imaculada e irresistível qualidade do ser amado.

Love and Pain, Edvard Munch
Torna-se frequente ver homens e mulheres inteligentes e equilibrados alterar de forma radical o seu comportamento e hábitos, em nome desta emoção. Embora já estejam identificados no corpo humano as transformações que ocorrem por via do apaixonamento – aumento da dopamina, neurotransmissor responsável por sintomas de prazer e da excitação, facto que tem o poder de nos alhear da realidade e a baixa da serotonina que provoca pensamentos obsessivos relativamente ao ser amado – não foi ainda possível determinar com precisão qual a causa inicial da paixão sentimental a que, de forma equívoca e perigosamente generalizada, se chama vulgarmente amor.
Pela minha parte, partilho de uma teoria conhecida. O sentimento de insuficiência para a construção da felicidade experimentado pelo ser humano relativamente a si próprio, leva-o a projectar frequentemente no outro aquilo que ele sente faltar-lhe para atingir a tal mítica bem aventurança que ninguém sabe ao certo em que consiste.  O mistério reside um pouco naquilo que no outro dá origem ao sinal de partida do processo. Por absurdo que pareça, não é tanto a aparência física ou a riqueza material que estão subjacentes à paixão (há que distinguir entre esta última e os seus demasiado frequentes simulacros). Muitas vezes, o apaixonado sentiu-se particularmente tocado por um sentir comum, a partilha de ideias, um perfil caloroso ou esquivo, características físicas não necessariamente atractivas para os outros mas que para ele resultam reminescentes de algo que o estimula mas cuja origem em si mesmo não consegue localizar com precisão. 
Muito é velado neste processo, em geral desestabilizador para quem o vive,  e à fase do palpitante coração, da idealização e do flutuar nas nuvens, segue-se o inevitável desencanto. A instalação da rotina, a que poucos laços deste tipo sobrevivem, desmascara impiedosamente as ilusões e permite um acesso mais directo à verdade do outro que não corresponde nunca à projecção criada. O apaixonado só esteve interessado nas características do outro que completam a imagem idealizada que dele criou,  dando deste modo lugar a uma falsa relação pois o processo teve lugar entre dois seres imaginados e não reais. Em casos raros, torna-se possível nesta fase, trabalhar no laço e aproximá-lo daquilo a que identificamos como amor amadurecido, com os traços de lucidez, companheirismo e honestidade que o mesmo implica.

De tudo isto resultam para mim várias conclusões.
A pessoa humana tem dentro de si um impulso para tocar mais alto, elevar-se acima  da rotina e do conhecido a que chamarei impulso para a auto-transcendência. Embora sem saber a que é que isso a pode levar, rotula-o de busca da felicidade. Este facto está na base da evolução da consciência.
Como não se conhece e não trabalha em si mesma, a pessoa humana vive na ignorância dos mecanismos subterrâneos que a habitam e é presa fácil do seu sentido de auto-insuficiência. É, por outro lado, vítima da normatização a que foi sujeita pela cultura e meio ambiente que a moldaram e que lhe inculcaram de forma enfática a noção do amor romântico.

Haverá um longo caminho a percorrer, a nível da consciência, até que tudo isto se ajuste. Atrevo-me a imaginar a dita paixão entre seres que não se idealizaram um ao outro, mas que encontraram no espelhamento recíproco, no companheirismo, cumplicidade e residência no afecto, uma plataforma duradoura de vida partilhada com alegria, prazer e descoberta. Mas, admitamos, a isso já não se pode chamar paixão, mas sim amor, Amor, AMOR!


Dado o cenário geral e o "trabalho de casa" por fazer, parece-me que estamos a anos-luz de lá chegar.

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