Há
dias, a propósito de outro assunto, surgiu uma polémica entre várias pessoas de
um grupo a que pertenço, essencialmente dirigida a mim, por a minha linguagem
escrita não ser suficientemente inclusiva. A expressão “linguagem inclusiva
mais igualdade de género” refere-se à forma como a língua deve reflectir a
existência da mulher como ser autónomo, completo em si, diferenciada do
masculino mas em pé de igualdade com o mesmo. Anseio legítimo e que subscrevo
inteiramente.
No entanto, embora
ame os voos utópicos, não me agrada entrar em jogos de faz de conta, em
especial num caso como este.
São
notórios os esforços que se vão fazendo nalguns sectores para reparar a
injustiça do tratamento escrito ou verbal da mulher no passado e que a reduzia
à invisibilidade. Pessoalmente, tenho adaptado a minha linguagem, conforme vou
sentindo e me parece justo, sem desfigurar o idioma. A língua é um ser vivo,
que tem a capacidade de se adaptar a realidades novas e não tenho qualquer
dúvida que encontra por si mesma a representação das mesmas. Mas é preciso que
elas já existam, de facto, para que essa representação efectiva aconteça
naturalmente.
Assim,
considero que a minha linguagem é sempre inclusiva na medida do possível, mas não artificiosamente.
Compreendo a dinâmica profunda e subterrânea das palavras e, para elas se imporem naturalmente, têm de corresponder
a uma realidade já existente. A língua,
como o corpo, é mais inteligente do que nós, e não vale a pena forçá-la. Cada
um tem a opção que tem, por mim tenho tentado ir por um caminho de coerência
com a minha consciência e tentado evitar obsessões. Nasci num país sufocante de
preconceitos, onde a mulher era, regra geral, a criada para todo o serviço. Com
o incentivo, exemplo de vida e coragem da minha amada Mãe, figura central e arquetípica
na minha existência, desenvolvi uma estratégia pessoal de sublevação
relativamente aos valores que o patriarcado me procurou impingir. Mas não quis
fazer o que eles fizeram. Nem quero. Está para nascer o macho que me há-de subjugar enquanto mulher, mas isso
não significa que a preservação e sustentabilidade da minha soberania pessoal
passe pela inferiorização ou punição do masculino.
Antes, a
minha crença é na transmutação, pelo conhecimento, por processos educacionais e
pelo determinado e firme comportamento da minha parte que, como mulher, nunca
"abdiquei das "minhas pérolas e rendas, das minhas lágrimas e gestos
de amor e de amar o masculino". Sou mãe de um homem e avó de quatro. Neles
pulsam almas que merecem a minha reverência. Neles procurei inculcar aquilo em
que acredito, mais pelo meu exemplo de vida do que pelas palavras. Com algum
sucesso, até agora.
Creio
firmemente que é na ressurgência do feminino no ser humano (mulheres e homens) e
na rectificação do caminho seguido pela consciência de muitas mulheres, hoje
consideradas emancipadas (mas que o são apenas economicamente), é no desabar
das infames estruturas em que o patriarcado muito assenta que reside a salvação
conjunta dos dois géneros. O mundo não é composto apenas daquilo que certos
sectores obcecados querem ver: há a Terra e o sistema solar, o vasto e
desconhecido cosmos, as árvores, as pedras da calçada, o sofrimento atroz e as
injustiças que se multiplicam pelo mundo em turbilhão, há nascer e morrer, crenças
de toda a ordem e ideologias antagónicas a gerarem conflitos sem fim,
ignorância, desinformação, inaptidão para lidar com o avanço tecnológico, há
sobretudo muita arrogância, busca de falso protagonismo e falta de humildade
para lidar com o todo que a vida representa na sua diversidade. Há a mulher,
idealmente em busca de si mesma, e...há o homem (que deverá seguir o mesmo
processo, até pela perda de identidade que está a sofrer, pelo menos no mundo
ocidental).
Vivemos, porém, num sistema ainda patriarcal, ainda são os valores do masculino que se procuram
impôr, a linguagem não pode, a não ser de modo artificial, corresponder a uma
realidade que ainda não existe em plenitude.
Por mais formulários que se
corrijam, por mais que certos políticos se dirijam, nos discursos com intenções ulteriores, aos
“Portugueses e Portuguesas”, a língua não integrará em definitivo o que não for
real.
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