Número total de visualizações de páginas

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

BOB DYLAN – PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 2016


Já sabemos que quase tudo tem mudado no mundo e que tudo continua  a mudar, num processo imparável, em busca desenfreada de inovação e de funcionamento fora da caixinha habitual. 
Tudo bem. Há épocas assim, durante as quais a humanidade aparenta receber determinados impulsos cósmicos para passos numa direcção nova. Aconteceu durante a Revolução Francesa, no movimento hippy, no de Maio de 68 em França, na Perestroika e na queda do Muro de Berlim, para mencionar apenas alguns desses momentos mais recentes.
Houve passos em frente e passos atrás, pois a consciência da humanidade está ainda na infância e a sua interpretação do que lhe chega do cosmos nem sempre é a mais apurada e tem tendência a deturpar, a desconhecer os seus limites e a acabar frequentemente no boicote, no mínimo distorção, do objectivo inicial.

A Academia Sueca decidiu atribuir este ano a maior distinção literária do nosso mundo a Bob Dylan.
Sem qualquer depreciação das grandes qualidades deste poeta/cantor popular cujos poemas atravessaram fronteiras e agitaram mentalidades através de várias gerações (o cantor/poeta tem hoje 75 anos), uma figura icónica na universalidade das mensagens que nos tem passado, não posso deixar de me recolher no meu lugar do espanto ante uma tal escolha para o Nobel da Literatura.
Talvez que na sua determinação de provocar, de assumir o novo e o diferente, a Academia Sueca se tenha no mínimo excedido ao atribuir o galardão máximo da literatura a este poeta/cantor. Talvez  que se tenha querido agradar à América, contrariar o movimento pró-Trump, reforçar a mensagem central de irreverência e de busca do Céu em nós, soar a novo e a diferente, buscar as respostas que “sopram no vento”.
Mas para tal fim, há outros prémios e reconhecimentos.
Literatura é literatura, corresponde à maestria da palavra, ao seu manejamento hábil e criativo, num exercício a um tempo alicerçado na cultura, no talento literário e na espiritualidade profunda. Basta  percorrer meia dúzia de blogs de qualidade para constatar que há tanta gente anónima, ou quase, a escrever maravilhosamente. Para não mencionar os muitos grandes poetas e escritores que nos deixaram um legado de peso, muitas vezes a bordejar a eternidade.
Quem se lembrou de Jorge Luis Borges, Natália Correia, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Maria Zambrano ou mesmo Jacques Brel, Vinicius de Morais ou Chico Buarque de Holanda para tal prémio?

Não, estes prémios convencem-me cada vez menos. Aliás, como quase todos os prémios. Nos tempos que correm, em que as referências culturais e sociais seguem os impulsos de inconstância da gig economy, melhor que nos habituemos a estes disparates. E que passemos ao lado, sem sermos afectados.


“The answer, my friend, is blowin' in the wind”

sábado, 1 de outubro de 2016

A NOITE ESCURA DA ALMA


Na escura noite da larga travessia
brotai, ó flores!
Nascei, amadas,
místicas produções do meu sentir…


Esvaziada de mim, acossada por obscuros seres e a vibratória energia de um vórtex de proporções desconhecidas, recomeço em mim e é na noite que conspira o sonho dos meus futuros, a voluptuosa imagem da libertação.
No breu, rasgo silenciosa o desenho orgânico e fluido pelo qual acedo às purificadoras brechas de um azul imaterial – repositório de todos os vazios, o azul onde nem forma, nem jeito nem sonido algum persistem.
Partem de mim as fórmulas conhecidas. Solene e doce, aguardo entre tormentas a revelação que esgrime, plasmática, as formas e entre formas  desta rota.
Ó noite, ó obscura noite da minha alma, em ti confronto o temido rosto do Medo maior enquanto caminho, infinitesimal, pelo gigantesco cenário.
Esperavas-me, afinal, ó noite adormecida, inconsciente em mim. Uma a uma, foram-se extinguido todas as luzes de fora e, no vasto mar de trevas, introduzi os meus passos.
Das texturas, dos secretos e nocturnos  movimentos resultam inesperados corolários.
Deslizo, erecta, num mar sem fundo e sem apelo. É o tempo de uma misteriosa gestação onde se misturam e diluem, num acto alquímico, noções, imagens, desejos, planos.
Cavernosa e cósmica, cobre-me a noite dos seus véus sombrios. Um coração infinito bate o ritmo dos meus passos, soam remotos ecos indistintos, mantras da alma, piedosos acompanhantes da solitária viajante.

Oh noche que guiaste!
Oh noche amable más que el alborada!*

No sono e nos sonhos sou o fervor sagrado da peregrina em busca de si mesma. Solitária e vaga, acossam-me os monstros que outrora ignorei. Mas a noite abriu em mim amplos olhos com que acedo à minha única e imutável verdade: o sopro criador, aquele que não se aprende em parte alguma e que hoje, por entre escolhos, me guia pelo interior de mim mesma.


É pelas estrias da coragem que atravesso o longo túnel, aterradora via iniciática, pois sei que na morte do que fui habita o meu renascimento, num promissor vislumbre da luz reveladora.
Noite escura da alma, dolorosa travessia, marcha para o centro, busca derradeira de horizontes sem ilusão: acolhe-me e assiste-me até ao fim, pois para além dos amargos sabores e das lágrimas, respira um determinado e inescapável processo na marcha dos meus passos.
Sacudida pelos tempos do meu tempo na vasta inescrutabilidade de um Tempo Maior, ouso pelas sombras o traço novo, o exploratório risco, na ânsia da luz anunciada.
É a hora de todas as incertezas e nela se abrem em esplendor sagrado novos portais. A possibilidade de acesso à auto-transcendência gera padrões desconhecidos e alimenta a luz fina e fria  de um anunciado amanhecer. Nos olhos felinos que das trevas me seguem, Bastit vela, protectora e justa, pelo equilíbrio dos meus passos.
Já algo se alçou em mim, num jorro majestoso de força inovadora, promitente das coisas do porvir. Esboça a grande Mão línguas de fogo nos contornos assombrosos de um horizonte que se abre pouco a pouco, ascensional e celeste, como um sopro de vida imortal. Sou a breve mas antiga peregrina entre o Céu e a Terra e em mim caminham os que foram e os que hão-de ser no sopro eterno da vida a revelar-se.
Olhados os terrores, transpostos os umbrais, escutado o silvo penetrante da mais devastadora solidão, aporto enfim. Saúdam-me à chegada os mil olhos do Céu e o Coração da Vida.

Oh noche que juntaste
amado con amada
amada en el amado transformada!*

Completa-se a larga travessia. Renovada como firme pilar cósmico, soa agora em mim, despontante e mágico como um lírio de seis pétalas, o canto novo.



* in San Juan de la Cruz , Noche Oscura del Alma


 https://www.youtube.com/watch?v=snIo2FrBGXY