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domingo, 19 de fevereiro de 2012

SOMOS E PASSAMOS


Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos
SOPHIA DE MELO BREYNER ANDRESEN

Soava a tua voz como um murmúrio. Baixo e rouco, quase imperceptível. Ontem, a meio da tarde, o sol desproporcionado a inundar-te o quarto na casa onde se propõem devolver-te o andar, a vida frouxa. Soava pouco, a pouco, quase nada, no dia imperfeito que passava.
Não era tanto o que soava, mas o que algures velado pelas rugas, se desprendia a jorros do teu corpo débil, dos olhos mortos, tristes, rasos da água tépida que teimavas em segurar para que ninguém visse.
Tudo se desprende, o que resta preso por um fio, até a memória do que foi, os intermináveis dias de labor, as poucas alegrias, o sonho tão perseguido nunca chegado, o sonho de seres o que sabias ser sem o poder pois os muros altos, as incontornáveis barreiras da limitação agrediam-te ameaçadoras, sempre, cada dia uma luta, um persistir no impossível, frágil mulher toda feita coragem…
Defraudada, enfim, alguém te mentiu, “não mais, sem volta a dar” nunca figurara antes no teu léxico. Mas agora és cada vez mais a sombra do que sonhaste, escapa-se tudo, a acção certeira e competente, as plantas florescentes sob as mãos dotadas, as crianças continuidade tua - tão lindas e doces e de olhos claros  como tu gostas- a casa da familia paredes objectos amados, memorias tantas em todos os cantos, dias muitos para trás de hoje. Tudo se esvai menos essa dor intensa, aguçada, pena mágoa desgosto de já não poder sonhar ser o que sabes ser sem o poder ser.
Agora já nada se sabe, tanto é dia como é noite, que importa, instalou-se uma fragilidade velhaca e traiçoeira no coração da vida, vida repetida sempre igual, sabor a nada, batas brancas, verdes, azuis, oxigénio, soro, ambulâncias, onde estou eu, meu Deus, para onde vou, será para breve ou ainda me resta alguma chance…
Emudeceste no terror da impotência, as mãos trémulas, artríticas, castigadas e ora inúteis, sentes, as mãos que beijo reverente na tarde absurda e ensolarada no mundo
onde “somos e passamos”, o mundo onde nos permitimos mutuamente e nos amámos, onde debaixo dos meus olhos doridos o fogo da velhice e da doença te queimam, aos poucos, no silêncio implacável do devir. E eu estou contigo, não porque o escolho, mas porque o sou, contigo, Mãe, com a tua lenda e a tua inconfessada Dor, a de não poderes sonhar mais ser o que sabes ser sem o poder…

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

SAUDADE


 A Saudade é um ente feminino.
 Vestida de impossíveis e de faltas,  aninhada no coração do desejo profundo  desloca-se no sentido inverso à linha e desafia Cronos com a exuberância de uma mulher sábia, intimamente ligada à sua proto-natureza. Inefável e experienciada com solenidade pela alma, permanence solitaria e viva no Verbo pela mão de um único idioma, o lusitano.
De onde veio e por quê só Portugal lhe dá voz? Cruzam-se nela memórias do povo navegador  que lhe deu nome quando, de terras longínquas, juntou numa só palavra saudação, falta, amor e bons votos de saúde. Mas Saudade é mais do que isso, ela espraia-se como aguarela derretida e entranhada nas células do corpo lusitano,  Saudade é partida e é chegada, morte e parto iminente que teima em não acontecer de um elo perdido, experiência indelével que sem se mostrar não nos larga.
Contudo, de um modo ou de outro, mais ou menos distanciados, toca-nos a todos. Não só os oriundos desta patria antiga, mas todos os povos do mundo sentem em qualquer grau esse impulso de recuperação de algo que lhes foge e a que anseiam regressar.
De olhos ao alto e na interioridade, buscamos aquilo para que a Saudade nos remete mas cujo rosto desconhecemos.

Saudade é melancolia, talvez sonho do regresso nostálgico de um passado que não sabemos descrever, um dia completo  e absoluto cuja não-memória mas profunda marca nos causa uma dor quase prazenteira.  Canto, choro, lamento das profundezas,  mulher das brumas a um tempo inacessível e presente, mítica deusa portadora de um futuro antigo, a Saudade respira como uma segunda natureza e esconde-se na latência do ser, mágica e recordatória do que sabemos sem o saber. Propaga vazios, ausência, sofridos desejos de retorno, faz experimentações pela voz do Poeta, plasma-se nas telas dos pintores, irrompe em dor criativa da pedra esculpida, canta sentida na “Voz de Portugal de seu nome Amália”, como disse Fernando Dacosta.
Saudade é não saber da Mãe que nos deu vida mas senti-la vibrar em cada momento, magna e transcendente , no infinitamente pequeno do corpo do que somos.

Branca, ausente e ubíqua, sarça ardente, promessa de dias rarefeitos,  resquício velado da Glória, sustentas-me Saudade no meu regresso a Casa.