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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

CELEBRANDO A INCERTEZA




Há dias, em Londres, num jantar de amigos ligados à arte – como o são, de um modo ou de outro, quase todos os meus amigos - discutia-se com apreensão e mágoa o estado do mundo. O Brexit, a inesperada/indesejada vitória do odiado Trump, a incerteza do amanhã para os pobres, os não brancos, os muçulmanos, os defensores do estado social, a cultura, a solidariedade e os valores em geral que as pessoas de boa fé e coração aberto têm tentado, ao longo de décadas, nutrir e preservar a todo o custo.
Muita revolta, muito lamento. Compreensíveis, mas inúteis.

A história acaba de virar uma página definitiva sobre o liberalismo – o termo pós-liberalismo entrou para ficar no vocabulário dos comentadores – e de nada serve planger os violinos da nossa desolação.
Há tempos que se vinha adivinhando a muito necessária mudança paradigmática, mas que nós, humanidade, não soubemos levar a cabo da forma angélica e pristina que os arautos da New Age incansavelmente anunciaram. Se a pequena minoria dos privilegiados deste mundo tem vindo a enriquecer cada vez mais, se a classe média do mundo ocidental está em vias de desagregação e um milhão de almas em Mossul sobrevive aterrorizado ao minuto vendo os entes queridos cair como moscas e sem destino para onde ir,  se o problema dos refugiados foi miseravelmente tratado e se olhou noutra direcção a ver se desaparecia, se não há liderança capaz no mundo, se a grande resposta que a UE encontra para as dificuldades dos seus membros é a austeridade, se a cultura e a educação têm sido relegados para situações cada vez mais alienadas e alienantes, o que é que se esperava?

As contas são simples de fazer. Cedo ou tarde, iria surgir alguém como Trump – hoje diabolizado como um anti-Cristo por vastas faixas da população mundial mas que não é mais do que um agente da mudança que o mundo produziu com os seus erros e arrogância.
Há demasiado individualismo, todos querem ser protagonistas de alguma coisa, todos querem consumir o mais possível, ganhar fortunas e com isso impor-se aos outros, a nossa solidariedade para com o sofrimento no mundo é da boca para fora e meramente televisiva.
A hipocrisia é tanta que, note-se, mesmo os conservadores legítimos (que funcionam dentro do processo democrático) estão ou caladinhos ou a arranjar explicações  mais ou menos apologéticas para o fenómeno Trump.

Temos que nos conformar? De modo algum!
A história já deu muitos trambolhões e, tristemente, pouco parecemos ter aprendido com isso, pois continuamos presos no imediatismo e na superficialidade da vida. Embora de coração pesado, apelemos a todos que têm um mínimo de consciência, que se não conformem com o “novo normal”, nem validem os muito prováveis aparentes sucessos “trumpistas” no mundo da matéria.
Porque eles estão já a caminho e, num mundo sem alma como aquele em que vivemos, será com o êxito material que nos tentarão calar a boca.
Lembram-se de “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury? Tal como os seus personagens, temos memória e não vamos deixar apagar da nossa consciência os valores fundamentais da vida humana no planeta. Não poderemos permitir que nos adormeçam com a cantilena do sucesso pelo sucesso.
Largas porções da humanidade estão a entrar numa escuridão energética, para não falar dos que já lá se encontram. É de esperar que aqueles de nós que ainda o podem fazer, se empenhem no dia a dia, através do comportamento e opções, no preservar dos sagrados valores da compaixão, solidariedade, dádiva e amor ao próximo, na educação pela liberdade de espírito, na informação não manipulada, no regresso inequívoco à proximidade com a Mãe-Natureza que tanto nos pode ensinar.

Tudo é incerto, mas esta é a nossa vida e nela temos que investir como melhor soubermos. Apoiados num firme enraizamento no planeta, nutramos a coragem e a lucidez, para que o amanhã seja mais promissor que o dia de hoje.