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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

DAR ROSTO À INVISIBILIDADE


Reencontrámo-nos ontem, no final da tarde, num cantinho da FNAC em Évora.  A Ana Ferreira Martins e eu.
Os livros têm sido o pretexto para os nossos encontros, mas percebi ontem que há caminhos que têm inevitavelmente que se cruzar, pela afinidade das motivações.
Tocou-me a importância que a Ana deu à minha presença porque tem a ver com a intimidade e  o reconhecimento instantâneos que  ocorrem entre certas almas.
A Ana escolheu, durante a sua vida, lançar um olhar atento e empenhado sobre os excluídos e deixa-nos agora este estudo sobre a mulher sem acesso ao privilégio elementar e básico que é ter um cantinho com tecto a que chame o seu lar, na nossa cidade de Lisboa.
Uns meros 30m2, com uma kitchenete, um WC, uma cama confortável, mesa e cadeira, q.b. como primeiro socorro. Mas não acontece ainda, na nossa sociedade, onde o número de mulheres excluídas socialmente aumenta, actual e dramaticamente entre as mais jovens.
O fenómeno, de abordagem muito complexa e difícil, tem origem na ordem de valores estabelecida que, para manter vivo um sistema obsoleto de privilégios dos poucos, faz vista grossa sobre o flagelo da pobreza e da exclusão social e  os problemas que o mesmo acarreta. Com toda a admiração e respeito que nos deve merecer o trabalho das várias instituições e indivíduos empenhados no alívio do sofrimento físico e psicológico das sem abrigo, o facto é que só o poder político pode viabilizar os instrumentos sociais indispensáveis ao tratamento eficaz deste fenómeno. Algo que continua a não acontecer nas nossas sociedades.
Maria, Sem Abrigo, 29 anos: “É assim, eu nunca votei em ninguém. As pessoas que votam, é bom, vai lutar por uma pessoa que vai lutar pelo país, mas o único meu voto que eu faço a toda a hora, a cada instante, é em DEUS...para mim não tem significado nenhum, porque é assim, eles é que ganham!...”[1]

Eles é que ganham.  E Deus parece ocupado demais para intervir.
A Ana falou de como é difícil caminhar socialmente quando se é pobre. Um cansaço brutal, tudo tão difícil, conducente à desistência.
Lembro o olhar da Ana, um olhar matizado pelo muito e doloroso que já viu durante a sua vida de assistente social, no caminho percorrido com coragem. O olhar da Ana entra no meu coração e nutre a esperança.
As palavras da Ana dão rosto à invisibilidade das mais frágeis entre nós, das esquecidas, fustigadas pela pobreza e miséria a todos os níveis. As que se escondem, as que não podem apoiar os seus filhos como desejariam, as que se prostituem por tuta e meia para sobreviver com precariedade, as que levam pancada a torto e a direito.
E permite ainda a expansão do conceito da sem abrigo, extensivo a toda a mulher que, esmagada pelo sistema patriarcal,  não sai da casa onde habita com o companheiro, por não ter para onde ir, à excepção da rua.
As palavras, o trabalho e o olhar da Ana são agitadores de consciência. Lembram-nos o muito que há a fazer, não só no plano da realidade imediatamente tangível, como também e sobretudo num trabalho diário de expansão da consciência do que é a mulher integral, uma vez resgatado o seu poder pessoal há muito aprisionado nos liames traiçoeiros de um paradigma de valores injustos e inadequados à verdadeira evolução da humanidade terrestre.

Um Viva à Ana,  nossa irmã!

Mariana Inverno,  Notas à Sombra dos Tempos (II)







[1] Ana Ferreira Martins, As Sem Abrigo de Lisboa, Ed. Chiado, 2017