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quinta-feira, 21 de junho de 2018

A PARTIR DA FRACTURA

                                               
Escreve a partir de uma fractura.
Um espaço abissal que se abriu entre ela no presente e a vida do passado. Agora parece ser o tempo das penalizações, cantos angulares a farpearem os dias, tempos pincelados de faltas, vazios, ausências – um cansaço imenso, um sem propósito aparente.
Não sabe o que lhe falta, quem lhe faz falta, quem a deixou. Reaprende aquilo de que é feita, avança entre as urtigas, faz de si mesma – idealizada – se a ocasião o pede. Mas não há canto. Nem janelas abertas para o sonho. É tudo concreto, materializável, não existem mais caminhos sublimes nem idealizações.

Ama aquele ser. Amar é uma coisa diferente do que as pessoas pensam. Amar é sentir até ao âmago que se é parte duma mesma coisa. É pertença, respiração justaposta, alegria irracional, localiza-se algures abaixo da derme do terno coração pulsante.
Pois ela ama assim aquele ser,  mas também lho levaram. Findou o tempo. São perigosas as alianças de alma tão fortes, pois ainda que indestrutíveis, na distância parecem subsistir apenas vastos mares de silêncio e de ausência.
As pessoas calculam a vida sobre um joelho coxo. Afirmam a pés juntos que um e um são dois. Destituídas e enfermas são contudo capazes das maiores crueldades. E, hoje em dia, tanto alinham com o nazismo como com o altruísmo, tudo ao de leve, de passagem, meteórico. Inconsequente.

Ela amarga. Ela quase a virar as últimas esquinas. Ela incrustada numa pedra porosa e cinza, vagas são as lembranças de outros dias, quando se sentia figura central de  um fogo de sarça.
Já não sabe se valeu a pena, se alguma coisa valeu a pena.  Os rostos e os gestos enganaram-na, iludida pela própria ingenuidade. Precisa de partir como um sopro, sem ruído, eliminar-se dos cenários criados, desconstruí-los por inadequados. É tempo de rumar até aos horizontes da Simplicidade, assim que possível.
Quando não pode mais, chama pela Mãe. Chora no seu colo invisível. Depois, apaziguada, prossegue.


Mariana Inverno, in “Livro dos Afectos”
Quadro: Isao Tomoda