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terça-feira, 13 de dezembro de 2016

AMOR, MEIA LUA E A ÁRVORE DO MUNDO

AMOR, MEIA LUA E A ÁRVORE DO MUNDO
Arranjo gráfico e pintura: Felippa Lobato

























Para o João,
Alma Forte e Clara,
companheiro de rota na densidade terrestre,
neste primeiro Natal sem a presença física
da Alma com Perfume de Jasmim.
Com Amor.
Mariana



Chegaram de mãos dadas, numa manhã outonal, risos expectantes olhares esperançados plenos de interrogações: Será aqui? Como? Quando?
Chegaram com o vento fresco da manhã,  a Alma Forte e Clara e a Alma com Perfume de Jasmim. Acompanhados de arcos-íris incandescentes e das memórias novas do para além da ordem estabelecida, num desafio à ilusão organizada.
Germinava nos corações dos seres o acto criador do lugar neste mundo, mas fora dele, aonde cultivar a multiplicidade dos sonhos comuns, reencontrar o sentir originário e construir  pontes magnéticas em profundo alinhamento com as energias mais subtis.

Há só uma espécie de Amor, todas as outras são simulacros, aproximações debotadas ao sentimento maior. Amor é aquilo que se faz sentir em cada átomo dos seres sintonizados e rege o funcionamento da nossa vida, ao transitar em glória inalterável por entre as dificuldades da densa existência. Comparável à luz dos sonhos, incondicional e estranho a conveniências e à lógica conhecida, o Amor pulsa sem controle racional e toma conta dos seres em resposta a um chamamento atávico, eco recuperado das vozes de antanho que nos habitam mas que a consciência relegou para o mundo do olvido.

epifania continuada
canto da alma
pontes de luz diáfana que a carne sente
e as mãos identificam
em pulsão conjunta com o universo

Foram assim, de novo companheiras, a Alma Forte e Clara e a Alma com Perfume de Jasmim. No limiar do terreno em socalcos, discretamente integrado na floresta, as almas beijaram-se, encorajadas pela tranquilidade do local e pela frescura que se desprendia do solo e da densa vegetação. Pequenas sombras movimentavam-se alegremente por entre os troncos, curiosas com a chegada destes seres.
A Alma com Perfume de Jasmim pediu permissão para entrar e, logo ali, se rejubilaram os Espíritos do Bosque pelos recém-chegados. Os devas receberam com carinho as sâmaras[1] de asas ténues com que o fluxo do vento fizera acompanhar o par e ajudaram a enterrá-las no solo, maravilhosa dádiva de boas vindas.

Os passos das almas em sintonia subiram, um a um, todos os socalcos, sobre eles ergueram plataformas assimétricas de convívio e silêncio e, assim, as paredes de cristal do seu palácio foram reflectindo, pouco a pouco, dentro o que estava fora e para fora o que estava dentro.

Na primavera seguinte e pelo poder transmutador da Mãe-Terra, das pequenas sâmaras  brotaram as três hastes de um freixo, primeira árvore da criação, axis do Mundo, árvore hermafrodita, ligada à protecção e à magia, símbolo da fecundidade. Foi pelo freixo que Odin conheceu os segredos das Runas pois a árvore cósmica recebera em tempos longevos as chaves dos códigos secretos da ordem natural do universo.

Existe, contudo, na densidade em que habitamos, um risco inerente a tudo quanto é criatividade, fertilidade e vida, por via do equilíbrio que a dualidade requer.
Alma com Perfume de Jasmim
Assim, a vida perdeu, numa noite de luar, a Alma com Perfume de Jasmim. Desprendeu-se como um sopro do corpo de dor e sofrimento, dançante pelos ares frios da noite, enquanto os devas, seus amigos, a reverenciavam na partida. Das novas alturas de Esplendor e Supra-Vida acompanha desde então, com a proximidade que só o Amor confere, a caminhada  da Alma Forte e Clara, a qual, reerguida pouco a pouco da dor sufocante da perda,  retomou gradualmente os sonhos que juntas na Terra haviam nutrido, os grandes e os pequenos, tudo perfumado das sagradas memórias, de novo possuída pela destreza do Espírito.
  
Em volta das três hastes do freixo construiu a Alma Forte e Clara, em silêncio, o banco de pedra em meia lua que o sonho espiritual comum havia concebido.
  
Em noites de lua cheia, torna-se visível para alguns uma luminosa coluna de luz sobre o banco de pedra, à volta do qual dançam os devas, em sentida homenagem à eternidade do Amor.

o vento transporta trovas
Banco em meia lua
à volta do freixo
sussurrantes de segredos
dia e noite noite e dia
portador de tantos  sonhos

hei-de cantar este fado
no banco da meia lua
que sentirás meu amor
se te disser que sou tua

se te disser que a memória
não é coisa de enganar
ela conta a nossa história
e perfuma o teu andar

sou o ser que não existe
o coração que não bate
sou a voz emudecida
na noite da tua solidão
mas eterna e constante
habito para sempre
no teu puro coração

â volta do nosso freixo
soam cânticos agora
dançam devas  baixa a luz
meu rei de Amor  aliado
já sabes não fui embora
pelo nosso reino encantado
velo hoje como outrora

Mariana Inverno
Natal de 2016



[1] Sementes do freixo

AUDIO:https://soundcloud.com/mariana-inverno/amor-meia-luz-e-a-arvore-do-mundo
Música: JORGE QUINTELA

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

CELEBRANDO A INCERTEZA




Há dias, em Londres, num jantar de amigos ligados à arte – como o são, de um modo ou de outro, quase todos os meus amigos - discutia-se com apreensão e mágoa o estado do mundo. O Brexit, a inesperada/indesejada vitória do odiado Trump, a incerteza do amanhã para os pobres, os não brancos, os muçulmanos, os defensores do estado social, a cultura, a solidariedade e os valores em geral que as pessoas de boa fé e coração aberto têm tentado, ao longo de décadas, nutrir e preservar a todo o custo.
Muita revolta, muito lamento. Compreensíveis, mas inúteis.

A história acaba de virar uma página definitiva sobre o liberalismo – o termo pós-liberalismo entrou para ficar no vocabulário dos comentadores – e de nada serve planger os violinos da nossa desolação.
Há tempos que se vinha adivinhando a muito necessária mudança paradigmática, mas que nós, humanidade, não soubemos levar a cabo da forma angélica e pristina que os arautos da New Age incansavelmente anunciaram. Se a pequena minoria dos privilegiados deste mundo tem vindo a enriquecer cada vez mais, se a classe média do mundo ocidental está em vias de desagregação e um milhão de almas em Mossul sobrevive aterrorizado ao minuto vendo os entes queridos cair como moscas e sem destino para onde ir,  se o problema dos refugiados foi miseravelmente tratado e se olhou noutra direcção a ver se desaparecia, se não há liderança capaz no mundo, se a grande resposta que a UE encontra para as dificuldades dos seus membros é a austeridade, se a cultura e a educação têm sido relegados para situações cada vez mais alienadas e alienantes, o que é que se esperava?

As contas são simples de fazer. Cedo ou tarde, iria surgir alguém como Trump – hoje diabolizado como um anti-Cristo por vastas faixas da população mundial mas que não é mais do que um agente da mudança que o mundo produziu com os seus erros e arrogância.
Há demasiado individualismo, todos querem ser protagonistas de alguma coisa, todos querem consumir o mais possível, ganhar fortunas e com isso impor-se aos outros, a nossa solidariedade para com o sofrimento no mundo é da boca para fora e meramente televisiva.
A hipocrisia é tanta que, note-se, mesmo os conservadores legítimos (que funcionam dentro do processo democrático) estão ou caladinhos ou a arranjar explicações  mais ou menos apologéticas para o fenómeno Trump.

Temos que nos conformar? De modo algum!
A história já deu muitos trambolhões e, tristemente, pouco parecemos ter aprendido com isso, pois continuamos presos no imediatismo e na superficialidade da vida. Embora de coração pesado, apelemos a todos que têm um mínimo de consciência, que se não conformem com o “novo normal”, nem validem os muito prováveis aparentes sucessos “trumpistas” no mundo da matéria.
Porque eles estão já a caminho e, num mundo sem alma como aquele em que vivemos, será com o êxito material que nos tentarão calar a boca.
Lembram-se de “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury? Tal como os seus personagens, temos memória e não vamos deixar apagar da nossa consciência os valores fundamentais da vida humana no planeta. Não poderemos permitir que nos adormeçam com a cantilena do sucesso pelo sucesso.
Largas porções da humanidade estão a entrar numa escuridão energética, para não falar dos que já lá se encontram. É de esperar que aqueles de nós que ainda o podem fazer, se empenhem no dia a dia, através do comportamento e opções, no preservar dos sagrados valores da compaixão, solidariedade, dádiva e amor ao próximo, na educação pela liberdade de espírito, na informação não manipulada, no regresso inequívoco à proximidade com a Mãe-Natureza que tanto nos pode ensinar.

Tudo é incerto, mas esta é a nossa vida e nela temos que investir como melhor soubermos. Apoiados num firme enraizamento no planeta, nutramos a coragem e a lucidez, para que o amanhã seja mais promissor que o dia de hoje.




quinta-feira, 13 de outubro de 2016

BOB DYLAN – PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 2016


Já sabemos que quase tudo tem mudado no mundo e que tudo continua  a mudar, num processo imparável, em busca desenfreada de inovação e de funcionamento fora da caixinha habitual. 
Tudo bem. Há épocas assim, durante as quais a humanidade aparenta receber determinados impulsos cósmicos para passos numa direcção nova. Aconteceu durante a Revolução Francesa, no movimento hippy, no de Maio de 68 em França, na Perestroika e na queda do Muro de Berlim, para mencionar apenas alguns desses momentos mais recentes.
Houve passos em frente e passos atrás, pois a consciência da humanidade está ainda na infância e a sua interpretação do que lhe chega do cosmos nem sempre é a mais apurada e tem tendência a deturpar, a desconhecer os seus limites e a acabar frequentemente no boicote, no mínimo distorção, do objectivo inicial.

A Academia Sueca decidiu atribuir este ano a maior distinção literária do nosso mundo a Bob Dylan.
Sem qualquer depreciação das grandes qualidades deste poeta/cantor popular cujos poemas atravessaram fronteiras e agitaram mentalidades através de várias gerações (o cantor/poeta tem hoje 75 anos), uma figura icónica na universalidade das mensagens que nos tem passado, não posso deixar de me recolher no meu lugar do espanto ante uma tal escolha para o Nobel da Literatura.
Talvez que na sua determinação de provocar, de assumir o novo e o diferente, a Academia Sueca se tenha no mínimo excedido ao atribuir o galardão máximo da literatura a este poeta/cantor. Talvez  que se tenha querido agradar à América, contrariar o movimento pró-Trump, reforçar a mensagem central de irreverência e de busca do Céu em nós, soar a novo e a diferente, buscar as respostas que “sopram no vento”.
Mas para tal fim, há outros prémios e reconhecimentos.
Literatura é literatura, corresponde à maestria da palavra, ao seu manejamento hábil e criativo, num exercício a um tempo alicerçado na cultura, no talento literário e na espiritualidade profunda. Basta  percorrer meia dúzia de blogs de qualidade para constatar que há tanta gente anónima, ou quase, a escrever maravilhosamente. Para não mencionar os muitos grandes poetas e escritores que nos deixaram um legado de peso, muitas vezes a bordejar a eternidade.
Quem se lembrou de Jorge Luis Borges, Natália Correia, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Maria Zambrano ou mesmo Jacques Brel, Vinicius de Morais ou Chico Buarque de Holanda para tal prémio?

Não, estes prémios convencem-me cada vez menos. Aliás, como quase todos os prémios. Nos tempos que correm, em que as referências culturais e sociais seguem os impulsos de inconstância da gig economy, melhor que nos habituemos a estes disparates. E que passemos ao lado, sem sermos afectados.


“The answer, my friend, is blowin' in the wind”

sábado, 1 de outubro de 2016

A NOITE ESCURA DA ALMA


Na escura noite da larga travessia
brotai, ó flores!
Nascei, amadas,
místicas produções do meu sentir…


Esvaziada de mim, acossada por obscuros seres e a vibratória energia de um vórtex de proporções desconhecidas, recomeço em mim e é na noite que conspira o sonho dos meus futuros, a voluptuosa imagem da libertação.
No breu, rasgo silenciosa o desenho orgânico e fluido pelo qual acedo às purificadoras brechas de um azul imaterial – repositório de todos os vazios, o azul onde nem forma, nem jeito nem sonido algum persistem.
Partem de mim as fórmulas conhecidas. Solene e doce, aguardo entre tormentas a revelação que esgrime, plasmática, as formas e entre formas  desta rota.
Ó noite, ó obscura noite da minha alma, em ti confronto o temido rosto do Medo maior enquanto caminho, infinitesimal, pelo gigantesco cenário.
Esperavas-me, afinal, ó noite adormecida, inconsciente em mim. Uma a uma, foram-se extinguido todas as luzes de fora e, no vasto mar de trevas, introduzi os meus passos.
Das texturas, dos secretos e nocturnos  movimentos resultam inesperados corolários.
Deslizo, erecta, num mar sem fundo e sem apelo. É o tempo de uma misteriosa gestação onde se misturam e diluem, num acto alquímico, noções, imagens, desejos, planos.
Cavernosa e cósmica, cobre-me a noite dos seus véus sombrios. Um coração infinito bate o ritmo dos meus passos, soam remotos ecos indistintos, mantras da alma, piedosos acompanhantes da solitária viajante.

Oh noche que guiaste!
Oh noche amable más que el alborada!*

No sono e nos sonhos sou o fervor sagrado da peregrina em busca de si mesma. Solitária e vaga, acossam-me os monstros que outrora ignorei. Mas a noite abriu em mim amplos olhos com que acedo à minha única e imutável verdade: o sopro criador, aquele que não se aprende em parte alguma e que hoje, por entre escolhos, me guia pelo interior de mim mesma.


É pelas estrias da coragem que atravesso o longo túnel, aterradora via iniciática, pois sei que na morte do que fui habita o meu renascimento, num promissor vislumbre da luz reveladora.
Noite escura da alma, dolorosa travessia, marcha para o centro, busca derradeira de horizontes sem ilusão: acolhe-me e assiste-me até ao fim, pois para além dos amargos sabores e das lágrimas, respira um determinado e inescapável processo na marcha dos meus passos.
Sacudida pelos tempos do meu tempo na vasta inescrutabilidade de um Tempo Maior, ouso pelas sombras o traço novo, o exploratório risco, na ânsia da luz anunciada.
É a hora de todas as incertezas e nela se abrem em esplendor sagrado novos portais. A possibilidade de acesso à auto-transcendência gera padrões desconhecidos e alimenta a luz fina e fria  de um anunciado amanhecer. Nos olhos felinos que das trevas me seguem, Bastit vela, protectora e justa, pelo equilíbrio dos meus passos.
Já algo se alçou em mim, num jorro majestoso de força inovadora, promitente das coisas do porvir. Esboça a grande Mão línguas de fogo nos contornos assombrosos de um horizonte que se abre pouco a pouco, ascensional e celeste, como um sopro de vida imortal. Sou a breve mas antiga peregrina entre o Céu e a Terra e em mim caminham os que foram e os que hão-de ser no sopro eterno da vida a revelar-se.
Olhados os terrores, transpostos os umbrais, escutado o silvo penetrante da mais devastadora solidão, aporto enfim. Saúdam-me à chegada os mil olhos do Céu e o Coração da Vida.

Oh noche que juntaste
amado con amada
amada en el amado transformada!*

Completa-se a larga travessia. Renovada como firme pilar cósmico, soa agora em mim, despontante e mágico como um lírio de seis pétalas, o canto novo.



* in San Juan de la Cruz , Noche Oscura del Alma


 https://www.youtube.com/watch?v=snIo2FrBGXY

sábado, 24 de setembro de 2016

CLARIDADE ROSA



Vestiu-se de rosa, como a luz que às vezes se vislumbra entre os muitos cambiantes da claridade moribunda do ocaso.

Como se quisesse estancar o palpitar do tempo, na roupagem condizente com a paz que alcançara dentro, e reter em si o momento fugidio que passava. 

MONTSERRAT GUDIOL
Estabelecera unidade permanente entre este e aquilo que queria perdurasse, em glória inalterável, transportado no seu ser como marca permanente, cântico de fundo, soberano e belo como o que passa à eternidade.

Vestida de rosa, iluminada de dentro por um clarão cuja fonte permanecia no reino impenetrável dos mistérios, levava em si, por entre o obscurantismo assassino dos dias, o efémero momento, plasmado com amor e determinação no corpo frágil e no coração heroico.

Cruzei-me com ela, sonhei-a talvez, vislumbrei a magia dos seus passos ressonantes nas trémulas gotas de orvalho, na manhã húmida e irreal.

Deixou de estar só.

A palavra de oiro constrói pontes indestrutíveis com a eternidade...