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quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

NOVA PALAVRA


Preciso de inventar uma palavra. Uma palavra nova, fresca, arejada. Perpassada de música e calor humano. Uma palavra táctil como uma pele quente, amistosa e envolvente. Um abraço.

Tem cor, sons alegres como o dos sinos das igrejas antigas, de campanários altos e o cheiro cimentado do incenso. Impõe-se a todas as outras, espécie de cântico dos cânticos, coroa majestosa de um léxico desconhecido, ainda à espera de ser inventado. Vela colorida, beijo amante, hino dos poetas, casa comunal, gáudio das crianças, há-de arder pela noite dentro, dançante e mística, fogueira nas trevas, marca de alianças.

Preciso dessa palavra vindoura, despida de mercantilismos, austera e ousada, portadora de afectos e consolos, corajosa e gorda como as deusas primitivas. Uma palavra rubra, que cheire a canela e a cravinho, saiba a mãos dadas e possa escancarar o coração da gente. Nova, bem cheirosa, intocada. Uma palavra que soe como a voz do sol e me transmita o reflexo prateado das estrelas, que cheire aos madeiros na praça pública mas me possa conduzir, como amante calorosa, à maior interioridade.

Vem a mim, palavra de ouro, mensagem espacial, palavra-chave das almas, verbo sentido, salvação de um mundo descompensado e disfuncional. Vem e traz contigo a tua descida à matéria. Ágil e espiritualizada, emblemática, sagrada, redentora, balsâmica, mãe da conciliação e da paz, berço da harmonia, semente de esperança, barca para um amanhã na Luz.

Vem, apresenta-te com urgência. Emerge desta farsa sem sentido onde nos perdemos cada ano, sem sabermos o porquê, o para quê. Substitui-te de uma vez à patética, esvaziada, alienante e impostora palavra Natal.

domingo, 8 de dezembro de 2013

DE BOAS INTENÇÕES ESTÁ O INFERNO CHEIO


Só chegamos a aprender muito do que é importante sobre nós mesmos e a vida em geral com a passagem dos anos, a dureza de certas experiências e uma aguda e imparcial auto-observação.
Refiro-me às boas intenções que, uma vez passadas a actos que supostamente beneficiarão aqueles a quem se destinam, acabam frequentemente em desastre.

Através da minha existência, tenho-me visto vezes sem conta confrontada com os maus resultados da minha bondade, vontade de ajudar o próximo, aliviar-lhe o sofrimento, partilhar com os outros a maior ou menor prosperidade que me vai chegando, tornar minhas também as dores e aflições alheias para que mais suportáveis se tornem para os directamente atingidos.



Com o passar dos anos, muitos desenganos e, esperemos, a chegada de alguma maturidade fui tomando consciência do seguinte.



·      As dores e limitações dos outros não me pertencem e não sou por elas responsável.

·      Os meus impulsos de desenfreada bondade e partilha emergem provavelmente de um sentido inconsciente de culpabilidade por eu estar melhor que o outro, o que é totalmente irracional e injusto para mim própria. Cada vida alberga insondáveis mistérios e cada um colhe o que semeou ao longo das provavelmente múltiplas existências no universo (não só na Terra) e em consequência da pessoa humana que ora consegue ser.

·      As minhas boas intenções, por mais sinceras que sejam, uma vez materializadas em actos interferem amiúde com o caminho evolutivo do outro, retiram-lhe a capacidade de luta e criam-lhe a ilusão de uma força que afinal não possui. O resultado é um inflacionamento do ego com as consequências previsíveis.

·      Estranhamente, a dádiva acaba muitas vezes por provocar ressentimento, em vez da natural gratidão – a velha síndrome do “cão que morde a mão que lhe dá de comer”. Assim, o receptor vira-se internamente contra o dador em quem acaba por encontrar mil defeitos e, não poucas vezes, a obrigatoriedade de dar sempre.



Estas conclusões, integradas após uma vida de difíceis experiências, não me tornaram amarga. Continuo a acreditar na importância da dádiva, da solidariedade e compaixão, na justa redistribuição de meios. Mas essas práticas devem ocorrer com discernimento, ponderadas com honestidade as razões para a nossa actuação, analisados com isenção os contornos da situação que se pretende aliviar e, sobretudo, tida em conta a não interferência na evolução espiritual do outro.

Receio que este último seja o ponto em que mais falhei até hoje.