Na escura noite da larga travessia
brotai, ó flores!
Nascei, amadas,
místicas produções do meu sentir…
Esvaziada de mim, acossada por obscuros seres e a vibratória
energia de um vórtex de proporções desconhecidas, recomeço em mim e é na noite
que conspira o sonho dos meus futuros, a voluptuosa imagem da libertação.
No breu, rasgo silenciosa o desenho orgânico e fluido pelo
qual acedo às purificadoras brechas de um azul imaterial – repositório de todos
os vazios, o azul onde nem forma, nem jeito nem sonido algum persistem.
Partem de mim as fórmulas conhecidas. Solene e doce, aguardo
entre tormentas a revelação que esgrime, plasmática, as formas e entre
formas desta rota.
Ó noite, ó obscura noite da minha alma, em ti confronto o
temido rosto do Medo maior enquanto caminho, infinitesimal, pelo gigantesco
cenário.
Esperavas-me, afinal, ó noite adormecida, inconsciente em
mim. Uma a uma, foram-se extinguido todas as luzes de fora e, no vasto mar de
trevas, introduzi os meus passos.
Das texturas, dos secretos e nocturnos movimentos
resultam inesperados corolários.
Deslizo, erecta, num mar sem fundo e sem apelo. É o tempo de
uma misteriosa gestação onde se misturam e diluem, num acto alquímico, noções,
imagens, desejos, planos.
Cavernosa e cósmica, cobre-me a noite dos seus véus sombrios.
Um coração infinito bate o ritmo dos meus passos, soam remotos ecos
indistintos, mantras da alma, piedosos acompanhantes da solitária viajante.
Oh noche que guiaste!
Oh noche amable más que el alborada!*
No sono e nos sonhos sou o fervor sagrado da peregrina em
busca de si mesma. Solitária e vaga, acossam-me os monstros que outrora
ignorei. Mas a noite abriu em mim amplos olhos com que acedo à minha única e
imutável verdade: o sopro criador, aquele que não se aprende em parte alguma e
que hoje, por entre escolhos, me guia pelo interior de mim mesma.
É pelas estrias da coragem que atravesso o longo túnel,
aterradora via iniciática, pois sei que na morte do que fui habita o meu
renascimento, num promissor vislumbre da luz reveladora.
Noite escura da alma, dolorosa travessia, marcha para o
centro, busca derradeira de horizontes sem ilusão: acolhe-me e assiste-me até
ao fim, pois para além dos amargos sabores e das lágrimas, respira um
determinado e inescapável processo na marcha dos meus passos.
Sacudida pelos tempos do meu tempo na vasta inescrutabilidade
de um Tempo Maior, ouso pelas sombras o traço novo, o exploratório risco, na
ânsia da luz anunciada.
É a hora de todas as incertezas e nela se abrem em esplendor
sagrado novos portais. A possibilidade de acesso à auto-transcendência gera
padrões desconhecidos e alimenta a luz fina e fria de um anunciado
amanhecer. Nos olhos felinos que das trevas me seguem, Bastit vela, protectora
e justa, pelo equilíbrio dos meus passos.
Já algo se alçou em mim, num jorro majestoso de força
inovadora, promitente das coisas do porvir. Esboça a grande Mão línguas de fogo
nos contornos assombrosos de um horizonte que se abre pouco a pouco,
ascensional e celeste, como um sopro de vida imortal. Sou a breve mas antiga
peregrina entre o Céu e a Terra e em mim caminham os que foram e os que hão-de
ser no sopro eterno da vida a revelar-se.
Olhados os terrores, transpostos os umbrais, escutado o silvo
penetrante da mais devastadora solidão, aporto enfim. Saúdam-me à chegada os
mil olhos do Céu e o Coração da Vida.
Oh noche que juntaste
amado con amada
amada en el amado transformada!*
Completa-se a larga travessia. Renovada como firme pilar
cósmico, soa agora em mim, despontante e mágico como um lírio de seis pétalas,
o canto novo.
* in San
Juan de la Cruz , Noche Oscura del Alma
Sem comentários:
Enviar um comentário