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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

AS AVÓS

Talvez sugestionada pelas fotos das avós que uma amiga ontem postou no facebook, acordei esta madrugada a pensar nas minhas e tive vontade de escrever sobre elas.
 Não nos damos conta em geral da herança genética que transportamos em consequência das linhagens que herdamos por via materna e paterna e de como a alma nos vai conduzindo, através da vida, na activação deste ou daquele aspecto. A alma vai dando esse impulso fundamental, espécie de timoneiro esforçado, por entre a complexa dança dos genes.
Avó Mariana
Fui sempre muito próxima da Avó Mariana (foto da esquerda), cujo nome herdei. Pertencia ao clube das “árvores que morrem de pé”. Viúva desde os vinte e poucos anos, muito teve de lutar para criar os três filhos. Composta e pragmática, com aquela imensa sabedoria de vida que as mulheres antigas possuiam, a sua presença, quando eu era criança, confortava-me e dava-me uma enorme segurança. Tinha uma casa muito arrumada e limpa e tudo bem planeado no dia a dia. Muito económica e boa administradora dos seus poucos pertences, lembrava-se sempre de todos através das prendinhas que nos trazia do Alentejo, onde morava. Fui sempre a sua neta preferida e chamava-me, já cega e no fim da sua longa vida, “amiga da minh’alma”. A Avó Mariana foi para mim um padrão referencial de grande importância, na primeira fase da minha vida. A alma sabia que eu havia chegado a um mundo onde a sobrevivência é difícil e dura e que, portanto, precisava de desenvolver na personalidade características mais próprias do lado esquerdo do cérebro. Essa avó foi, portanto, a minha grande cúmplice nos primeiros anos da minha vida e foi ela quem me introduziu, de forma natural, à beleza e riquezas escondidas do Alentejo, que tanto amo mas onde grassava a maior pobreza nesses tempos distantes.
A Avó Mariana foi a minha avó paterna.
  
Avó Maria
Eu tinha, porém, outra avó, de seu nome Maria da Cruz, a Avó Maria, de quem eu não gostava muito. Tinha sido, na juventude, uma jovem abastada, filha única de mercadores bem sucedidos, dotada de beleza fisica e do dom da palavra. Apaixonou-se cedo por um sargento bem parecido e relativamente culto, não aprovado contudo pela família dela. Fugiram juntos, casaram, Maria foi deserdada pelos pais enraivecidos e inconsoláveis. O sargento, meu avô, que ao que consta não soube viver à altura da inteligência com que viera dotado, encheu-a de filhos e perdeu-se por entre os vapores do álcool e os braços de outras muheres. A Avó Maria teve de lançar mão a tudo quanto pode para criar os filhos: fazia flores de papel frisado, vendia bolos para fora, era curadora dos males alheios. Vinha gente das aldeias próximas de Serpa consultá-la de propósito e receber tratamento. Realinhava as “linhas desmentidas “ nos corpos das pessoas, ritual que fazia acompanhar de rezas ditas em voz baixa, cadenciada mas rápida, enquanto desenhava certos sinais sobre o corpo das pessoas. Mas o que de mais impressionante recordo dela era a sua capacidade para contar histórias ad lib, com uma tal imaginação e maestria da palavra, que mantinha audiências atentas durante longas horas.
Contudo, eu não me sentia segura perto dela, o seu contacto não era para mim balsâmico, como o da outra avó. Via-a desleixada, pouco limpa, a casa sempre desorganizada. Vivia com um filho adulto, alcoólico, um “desgraçado que não me tem senão a mim”. De cara sempre transpirada, o seu beijo não me era agradável. Faleceu quando eu era adolescente e foi a minha avó materna.
Só por volta dos meus quarenta anos, comecei a compreender a dança arquetípica dentro de mim que estas avós representam. Se a Avó Mariana foi um pilar indispensável na construção da minha personalidade e representa a minha capacidade de lidar com o mundo tangível, recebi da Avó Maria aquilo que mais valorizo para a expressão da minha alma: a capacidade de lidar com as palavras e de, através delas, me autodescobrir com mais rigor.
Benditas sejam, ambas as avós!

Concluo assim, que poucas coisas na vida são aquilo que parecem ser e “por detrás de cada coisa/ há uma coisa outra”, como Pessoa escreveu.



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