Talvez
sugestionada pelas fotos das avós que uma amiga ontem postou no facebook,
acordei esta madrugada a pensar nas minhas e tive vontade de escrever sobre
elas.
Avó Mariana |
Fui sempre muito próxima da Avó Mariana
(foto da esquerda), cujo nome herdei. Pertencia ao clube das “árvores que
morrem de pé”. Viúva desde os vinte e poucos anos, muito teve de lutar para
criar os três filhos. Composta e pragmática, com aquela imensa sabedoria de
vida que as mulheres antigas possuiam, a sua presença, quando eu era criança,
confortava-me e dava-me uma enorme segurança. Tinha uma casa muito arrumada e
limpa e tudo bem planeado no dia a dia. Muito económica e boa administradora
dos seus poucos pertences, lembrava-se sempre de todos através das prendinhas
que nos trazia do Alentejo, onde morava. Fui sempre a sua neta preferida e
chamava-me, já cega e no fim da sua longa vida, “amiga da minh’alma”. A Avó
Mariana foi para mim um padrão referencial de grande importância, na primeira
fase da minha vida. A alma sabia que eu havia chegado a um mundo onde a
sobrevivência é difícil e dura e que, portanto, precisava de desenvolver na personalidade
características mais próprias do lado esquerdo do cérebro. Essa avó foi,
portanto, a minha grande cúmplice nos primeiros anos da minha vida e foi ela
quem me introduziu, de forma natural, à beleza e riquezas escondidas do
Alentejo, que tanto amo mas onde grassava a maior pobreza nesses tempos
distantes.
A Avó
Mariana foi a minha avó paterna.
Avó Maria |
Eu tinha, porém, outra avó, de seu nome
Maria da Cruz, a Avó Maria, de quem eu não gostava muito. Tinha sido, na
juventude, uma jovem abastada, filha única de mercadores bem sucedidos, dotada
de beleza fisica e do dom da palavra. Apaixonou-se cedo por um sargento bem
parecido e relativamente culto, não aprovado contudo pela família dela. Fugiram
juntos, casaram, Maria foi deserdada pelos pais enraivecidos e inconsoláveis. O
sargento, meu avô, que ao que consta não soube viver à altura da inteligência
com que viera dotado, encheu-a de filhos e perdeu-se por entre os vapores do
álcool e os braços de outras muheres. A Avó Maria teve de lançar mão a tudo
quanto pode para criar os filhos: fazia flores de papel frisado, vendia bolos
para fora, era curadora dos males alheios. Vinha gente das aldeias próximas de
Serpa consultá-la de propósito e receber tratamento. Realinhava as “linhas
desmentidas “ nos corpos das pessoas, ritual que fazia acompanhar de rezas
ditas em voz baixa, cadenciada mas rápida, enquanto desenhava certos sinais
sobre o corpo das pessoas. Mas o que de mais impressionante recordo dela era a
sua capacidade para contar histórias ad lib, com uma tal imaginação e maestria
da palavra, que mantinha audiências atentas durante longas horas.
Contudo,
eu não me sentia segura perto dela, o seu contacto não era para mim balsâmico,
como o da outra avó. Via-a desleixada, pouco limpa, a casa sempre
desorganizada. Vivia com um filho adulto, alcoólico, um “desgraçado que não me
tem senão a mim”. De cara sempre transpirada, o seu beijo não me era agradável.
Faleceu quando eu era adolescente e foi a minha avó materna.
Só por
volta dos meus quarenta anos, comecei a compreender a dança arquetípica dentro
de mim que estas avós representam. Se a Avó Mariana foi um pilar indispensável
na construção da minha personalidade e representa a minha capacidade de lidar
com o mundo tangível, recebi da Avó Maria aquilo que mais valorizo para a
expressão da minha alma: a capacidade de lidar com as palavras e de, através
delas, me autodescobrir com mais rigor.
Benditas
sejam, ambas as avós!
Concluo
assim, que poucas coisas na vida são aquilo que parecem ser e “por detrás de
cada coisa/ há uma coisa outra”, como Pessoa escreveu.
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