Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
(...)
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Carlos Drumond de Andrade
Quadro: Lauri Blank |
Amar quer quase sempre dizer que aquele que se diz apaixonado por outrem está, antes de tudo, enamorado do próprio amor.
Les Aamants, Magritte |
Aquilo que despoleta o amor
sentimental está envolvido em mistério, pois as razões usualmente apontadas
para tal fenómeno – atracção física, intelectual, química entre os seres e
outras – aparecem insuficientes para explicar a radical alteração de
comportamento que o ser enamorado apresenta, como se dentro de si tivesse
emergido uma outra pessoa: alguém irracional, desinteressado de tudo quanto não
tenha a ver com a história sentimental em curso e, acima de tudo, destituído de
qualquer objectividade em relação a quem sente amar. A abundância de
superlativos e o encantamento com o outro brilham-lhe nos olhos e cantam
repetitivamente nas palavras, pelo menos
no capítulo inicial do processo, a imensurável, inultrapassável, inconcebível,
fabulosa, imaculada e irresistível qualidade do ser amado.
Love and Pain, Edvard Munch |
Torna-se frequente ver homens e
mulheres inteligentes e equilibrados alterar de forma radical o seu
comportamento e hábitos, em nome desta emoção. Embora já estejam identificados
no corpo humano as transformações que ocorrem por via do apaixonamento – aumento
da dopamina, neurotransmissor responsável por sintomas de prazer e da
excitação, facto que tem o poder de nos alhear da realidade e a baixa da
serotonina que provoca pensamentos obsessivos relativamente ao ser amado – não
foi ainda possível determinar com precisão qual a causa inicial da paixão
sentimental a que, de forma equívoca e perigosamente generalizada, se chama
vulgarmente amor.
Pela minha parte, partilho de uma
teoria conhecida. O sentimento de insuficiência para a construção da felicidade
experimentado pelo ser humano relativamente a si próprio, leva-o a projectar
frequentemente no outro aquilo que ele sente faltar-lhe para atingir a tal
mítica bem aventurança que ninguém sabe ao certo em que consiste. O mistério reside um pouco naquilo que no
outro dá origem ao sinal de partida do processo. Por absurdo que pareça, não é
tanto a aparência física ou a riqueza material que estão subjacentes à paixão
(há que distinguir entre esta última e os seus demasiado frequentes simulacros).
Muitas vezes, o apaixonado sentiu-se particularmente tocado por um sentir
comum, a partilha de ideias, um perfil caloroso ou esquivo, características
físicas não necessariamente atractivas para os outros mas que para ele resultam reminescentes de algo que o estimula mas cuja origem em si mesmo não consegue
localizar com precisão.
Muito é velado neste processo, em
geral desestabilizador para quem o vive,
e à fase do palpitante coração, da idealização e do flutuar nas nuvens,
segue-se o inevitável desencanto. A instalação da rotina, a que poucos laços
deste tipo sobrevivem, desmascara impiedosamente as ilusões e permite um acesso
mais directo à verdade do outro que não corresponde nunca à projecção criada. O
apaixonado só esteve interessado nas características do outro que completam a
imagem idealizada que dele criou, dando
deste modo lugar a uma falsa relação pois o processo teve lugar entre dois
seres imaginados e não reais. Em casos raros, torna-se possível nesta fase,
trabalhar no laço e aproximá-lo daquilo a que identificamos como amor
amadurecido, com os traços de lucidez, companheirismo e honestidade que o mesmo
implica.
De tudo isto resultam para mim várias
conclusões.
A pessoa humana tem dentro de si um
impulso para tocar mais alto, elevar-se acima
da rotina e do conhecido a que chamarei impulso para a
auto-transcendência. Embora sem saber a que é que isso a pode levar, rotula-o
de busca da felicidade. Este facto está na base da evolução da consciência.
Como não se conhece e não trabalha
em si mesma, a pessoa humana vive na ignorância dos mecanismos subterrâneos que
a habitam e é presa fácil do seu sentido de auto-insuficiência. É, por outro
lado, vítima da normatização a que foi sujeita pela cultura e meio ambiente que
a moldaram e que lhe inculcaram de forma enfática a noção do amor romântico.
Haverá um longo caminho a
percorrer, a nível da consciência, até que tudo isto se ajuste. Atrevo-me a
imaginar a dita paixão entre seres que não se idealizaram um ao outro, mas que
encontraram no espelhamento recíproco, no companheirismo, cumplicidade e
residência no afecto, uma plataforma duradoura de vida partilhada com alegria,
prazer e descoberta. Mas, admitamos, a isso já não se pode chamar paixão, mas
sim amor, Amor, AMOR!
Dado o cenário geral e o "trabalho de casa" por fazer, parece-me que
estamos a anos-luz de lá chegar.
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