Já existia, desde há tempos, para os homens. Embora tenha
opinião pouco favorável sobre o assunto, não vou aqui discuti-lo pois não sou
homem, nem me sinto abalizada para analisar as questões íntimas do sexo oposto.
Apareceu agora no mercado para as mulheres. Addyi, a
pílula cor-de-rosa. Após anos de investigação e, ao que parece, muito aguardada, a miraculosa pílula aumenta
a libido das mulheres, actuando directamente sobre o seu sistema nervoso
central. Com efeitos secundários, claro, embora isso tenha uma importância menor
para a questão que desejo analisar aqui.
Hoje em dia é difícil que algo me surpreenda, os tempos vão
de feição a que qualquer coisa se possa esperar, todo o tipo de alienações,
falseamentos, fraudes, mentiras.
Não obstante esse estado de abertura permissiva a qualquer
possibilidade, confesso que a notícia me
causou um estranho impacto. Senti-a como bofetada abusiva e deslocada, uma
espécie de alfinetada certeira no coração apertado e tenso pelos dias e
ocorrências destes tempos. Em última análise, a mulher fica enfim reduzida à
condição de máquina e o seu comportamento e reacções no âmbito sexual
dependentes da ingestão de uma pílula.
Sentimentos, ciclos de vida, o enquadramento sagrado em que o sexo deve ocorrer jamais desligado do amor – nada disso parece contar para este miserável e decadente sistema de valores, paradigma sem alma que, apesar de moribundo, propaga indefinidamente o seu estertor de morte com produções como a pílula rosa.
Convém ter presente que este é um remédio desenvolvido por uma sociedade de contornos patriarcais, na qual a mulher está muito mal compreendida, sujeitada como foi a uma fragmentação milenar e sofredora, em consequência, de limitações complexas a nível da libido.
Sentimentos, ciclos de vida, o enquadramento sagrado em que o sexo deve ocorrer jamais desligado do amor – nada disso parece contar para este miserável e decadente sistema de valores, paradigma sem alma que, apesar de moribundo, propaga indefinidamente o seu estertor de morte com produções como a pílula rosa.
Convém ter presente que este é um remédio desenvolvido por uma sociedade de contornos patriarcais, na qual a mulher está muito mal compreendida, sujeitada como foi a uma fragmentação milenar e sofredora, em consequência, de limitações complexas a nível da libido.
Que mulher sou eu, afinal, se o meu desejo sexual tem a ver com uma pílula, rosada, para não destoar do género? Em que tipo de aberração me tornei se o meu corpo, na sagrada prática do amor, é apenas uma máquina de reacções químicas controladas por fármacos, sem que o meu corpo emocional, para não ir mais longe, não seja tido nem achado para os meus envolvimentos íntimos e performance?!
No fundo, não é de admirar. Vivemos num imediatismo perigoso
e patético e uma pilula cor-de-rosa pode similar, ainda que de modo passageiro,
a solução rápida para problemas atávicos cuja solução exigiria empenho e aprofundado esforço
de expansão da consciência por parte de homens e mulheres.
Por atalhos sem alma, não se abrirão jamais as portas do
céu.
Mariana Inverno, NOTAS À SOMBRA DOS TEMPOS
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