Neste
jogo complexo que é a vida, as peças dos nossos gestos, afectos, transferências
e intenções encaixam usualmente no que nos é mais conveniente. Por maior
dificuldade que tenhamos em aceitá-lo, a vida e os seus imbroglios são, para
cada um, uma coisa diferente e o esforço pessoal vai inevitavelmente na direcção das coisas fazerem sentido para o
próprio. No caso particular das nossas
vulnerabilidades, o drama adensa-se.
Michel Cheval, ON THE WAY OF DESTINY |
Soube
recentemente do caso de uma suposta mecenas que, vinda de longe, iria salvar
meio mundo das dificuldades da vida e financiar n projectos, imbuídos de espiritualidade. Pouco a pouco, várias pessoas com
dificuldades económicas e sonhos pessoais de avanço da consciência, acercaram-se à dita mecenas na expectativa da
chegada da prometida ajuda.
De
algum modo, as suas vidas ficaram em suspenso, cativas desse sonho que lhes
criava novos horizontes e lhes permitia respirar a esperança. Ocorreu um
interstício de alívio entre a dura realidade e a projecção do sonho realizado ou, pelo menos, em marcha.
Um pouco como quando jogamos no euromilhões com uma fé cega e planeamos durante
dias o que vamos fazer com tal fortuna – os problemas reais tornam-se
inexistentes ante a avalanche da riqueza e, no no écran interno, surge todo o
tipo de materializações, inacessíveis até então.
Pois, como no caso do euromilhões e protelada de mês para mês, a ajuda da mecenas não chegou. O balão perdeu o ar e os dias recuperaram a sua patine real.
Pois, como no caso do euromilhões e protelada de mês para mês, a ajuda da mecenas não chegou. O balão perdeu o ar e os dias recuperaram a sua patine real.
Parece
que a falsa benfeitora poderá padecer de algum distúrbio: megalomania, síndrome
de salvatore mundi ou outras coisas
aparentadas. Pouco importa. O que conta aqui é tentar compreender o
mecanismo interior que leva pessoas
inteligentes, bem intencionadas e com projectos muitas vezes válidos a
transferirem, ainda que temporariamente, a possibilidade de realização dos
mesmos para uma terceira pessoa que nunca viram, da qual nada sabem a não ser a
máscara apresentada pela net. Quanto a mim, isto prende-se com um problema
universal – por via das nossas vulnerabilidades, acreditamos no que nos convem,
naquilo que mitiga a nossa dor, no abraço que envolve a nossa carência, no
falso trampolim quântico para a concretização dos nossos sonhos e que nos é prometido
a troco de nada.
Não
defendo que o chamado milagre não exista. Milagre entendido como o transcender
das leis conhecidas da vida e da matéria. O mecanismo que o acciona, contudo,
prende-se muito mais com o poder pessoal de cada um, a sua capacidade para nutrir o sonho mantendo-se enraizado na Terra
onde se manifesta e a lucidez necessária para descartar o ilusório.
A vida tem vontade própria e nós somos os seus agentes.
Mariana Inverno, NOTAS À SOMBRA DOS TEMPOS
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