Talvez valha a pena reflectir sobre o conceito de cold reader. Uma amiga mencionou o termo há dias, durante
uma conversa, aplicando-o a alguém que ambas conhecemos.
Cold reading é uma espécie
de vampirismo de ideias, palavras, gestos, estilos, que uma pessoa faz da outra,
através da observação e os utiliza, depois, de forma mimetizada. Sem ter
integrado, é óbvio, tudo o que está por detrás de cada um deles: experiência
pessoal específica, anos de estudo, uma inteligência concreta ou intuitiva, heranças da linhagem e as múltiplas e em
grande parte misteriosas variáveis ligadas a cada pessoa e que a tornam única.
O cold reader é hábil nessa prática e
passa muitas vezes não detectado, sendo pelo contrário objecto de admiração dos
demais.
Na ponta extrema deste fenómeno e com uma acepção particular,
situam-se os casos mais gritantes de cold
reading de auto-proclamados médiums, videntes, leitores de tarot, certos
psicólogos, et cetera, que abundam
nas sociedades actuais em crise e se aprimoraram na arte de manipular os seus fragilizados
clientes. Isso acontece através de uma desenvolvida capacidade de, através de
declarações de carácter geral, ir
extraindo a informação que o cliente lhe vai passando sem que este último se dê
conta disso. Perante afirmações generalistas por parte do reader, que se aplicam a um vasto numero de pessoas e situações, o
cliente tende a validar subjectivamente os detalhes que se lhe apresentam
correctos e a esquecer os outros. De igual modo, a leitura corporal e a gestualidade
do cliente em muito auxiliam quem “lê”.
Existe todo um manancial de livros, guias e orientações que ensinam um cold reader a profissionalizar-se, in twelve easy lessons.
Existe todo um manancial de livros, guias e orientações que ensinam um cold reader a profissionalizar-se, in twelve easy lessons.
A cold reading, porém, é
feita por todos nós em maior ou menor grau e a inter-influência de todos os
aspectos acima referidos é um facto inescapável. O nosso software
interno busca, constantemente, referências, ideias, padrões de comportamento,
icons. Quanto maior for o vazio interior, a falta de cultura ou de honestidade
e a insegurança pessoal, mais acentuada se torna essa apropriação instantânea e
indevida daquilo que no outro pensamos poder acrescentar algo ao que somos (ou
parecemos ser), enriquecer a nossa imagem e performance
perante a audiência.
Como obviar, então, aos efeitos perniciosos do cold reading? Creio que só
pela consciência, no assumir das nossas reais qualidades e limitações, num
sincero e aprofundado exercício constante de humildade e de respeito pelo
outro, poderemos consegui-lo. A busca de criatividade que nos habita deverá ser
o nosso timoneiro na auto-descoberta. O que existe – o mundo natural, os
estudos para o conhecimento, a intuição, os sonhos e tanto mais – está aí para
todos. E cada um tem a oportunidade de neles trabalhar, sem necessidade de roubar
ao outro palavras, posições, expressão artística.
Tenho demorado toda uma vida a identificar quem é, no meu núcleo
mais próximo, declaradamente cold reader.
Não é fácil encarar esse facto, em especial quando existem laços de afecto com
o outro. Como duro é encararmos as vulnerabilidades que nos tornam presa fácil
do cold reader.
Torna-se porém deveras insuportável, até mesmo doloroso,
identificar em nós próprios os indícios dessa prática, por vezes inconsciente,
mas sempre aparentada da fraude.
Muito ilucidativo e pertinente!.. Grata Mariana.
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