Há
qualquer coisa de essencial que se perdeu no mundo em que vivo. Algo que vem do
lado feminino da vida e que a nossa cultura de orientação patriarcal barrou,
empurrando esses aspectos para níveis recônditos do ser.
Penso
nestes coisas enquanto olho, num livro companheiro da minha insónia, figurinhas
pré-micénicas da deusa datadas de cerca de dois milénios A.C. Vêm-me à
memória a imagem da “Vènus de Willendorf”, a representação em escultura mais
antiga que se conhece do ser feminino, encontrada numa caverna na Áustria e que
acabou por ser datada de cerca de 24.000 A.C. O rotundo dos corpos, as curvas acentuadas das
ancas e das mamas circulares são para mim evocativas de uma energia vital que
parece actualmente perdida ou nos escapa, por via do nosso posicionamento face
a nós mesmos. Figuras reminiscentes de
uma alegria erótica, um assumir frontal do instintivo e da paixão pela vida e
pelo natural que hoje desconhecemos. Em sua substituição, emergiram a
promiscuidade sexual e o artificialismo do normótico .
A
questão prende-se com o processo puramente mental que dirige as nossas vidas, em
aceleração crescente e muito suadas. Se há quatro ou vinte e quatro milénios atrás, uma
antepassada, distante de mim no tempo é certo, mas figurante na mesma linhagem,
segurava nas mãos uma destas figurinhas e nela colhia inspiração e segurança
para assumir as suas facetas de fertilidade, alegria criativa, sensualidade e
erotismo, o que foi que me aconteceu a mim? Onde se esconde, na minha vida de
agora, essa pulsão natural, plataforma para um pleno gozo da existência e da
sua inerente vitalidade? Para que níveis velados do ser escorregou o lado mais
esplendoroso do meu ser feminino?
Identifico laivos desse aspecto no amor que sinto pela beleza e pela arte, no empenho que ponho na estética e em certos cuidados pessoais, na abrangência do calor humano que me habita, na sincera e consequente solidariedade para com o sofrimento alheio, no apelo que as flores e a natureza em geral exercem sobre mim. Mas há um elemento profundo de ligação entre todos esses factores que este mundo não me permite assumir, pois o primado da racionalidade e da norma sobrepôs-se ao do sentir com as conhecidas e desastrosas consequências de falta de harmonia e do culto da vida interior, sentimento de vazio e ausência de sentido transcendente na caminhada.
Olho
com ternura a figurinha que a minha antepassada venerava e uma parte de mim
sabe, não sem alguma pena, que a recuperaçao desse estado é praticamente
inviável. Estamos num mundo em acelerada mudança e inovação tecnológica, é
quase impossível não perder o fio à meada, com a avalanche de informação, os
imperativos da sobrevivência e o empestamento da vida a muitos níveis.
Mas,
seja qual for a direcção que o mundo tomar, preciso
de me lembrar que recordo veladamente algo perdido em mim, algo que já não sei
fazer bem e que a minha consciência me dita que não me conforme, que busque,
com quantas forças eu tenha, esse canto perdido, essa inebriante dança dos
sentidos, afinal a pureza da sensualidade ao serviço do espírito.
Outro grande texto, Mariana! No embalo das suas palavras, e antes que o meu intelecto entrasse em acção, transportei-me ao tempo das nossas antecessoras e por breves instantes senti a alegria criativa, a sensualidade e o extâse de que fala o seu texto. O tempo não existe, é apenas uma construção nossa, e a alma da nossa antecessora está presente em nós neste momento preciso, 24.000 DC, e por isso a reconhecemos tão bem.....bem aventurados os que conseguem dar forma, através das palavras, a sentimentos arquetípicos "nascidos na mente de Deus e presentes na memória da nossa alma" como tão bem, e tão profundamente, Carl Yung os soube interpretar. Beijo grande, querida Mariana, e continue a inspirar-nos com as suas palavras!
ResponderEliminarMuito grata, querida Leonor, não imagina a importância que a afinidade do seu sentir com o meu tem para a minha caminhada como obreira das palavras.
ResponderEliminarAbençoada seja!