Começou por me surpreender o impacto que a sua
morte causou em mim.
Embora tenha tido contacto com Soares a nível
profissional, nunca houve propriamente uma relação de amizade pessoal. Tinha
noventa e dois anos, estava doente há bastante tempo e, depois da encefalite,
há três, nunca mais foi o mesmo. Tratou-se de uma morte anunciada, a qual pacientemente esperou que a quadra festiva terminasse para
se revelar em toda a sua irreversibilidade.
Senti-me de luto,
correram-me as lágrimas várias vezes e, absurdamente, algo parecia perguntar em
mim: “E agora?” Qualquer coisa no ar, um
vago sopro triste, reminiscente de orfandade.
O impacto foi
inesperado mas a surpresa aponta para o muito pouco atentos que estamos ao que
realmente toca pontos-chave em nós, a identidade, os impulsos da alma e coisas tais.
Nasci e respirei
durante mais de vinte anos num país pequeno, periférico e isolado, onde os tentáculos
autoritários do sistema instalado se faziam sentir por toda a parte e
penetravam os nossos sonhos e gritos de alma com a fria e cortante lâmina da
censura. Um país agarrado de forma extemporânea a um império que o já não era,
uma terra onde tudo soava a acanhado e os poetas guardavam os versos mais
importantes no coração dorido. Quando o
não faziam, conheciam as agruras da prisão e do isolamento.
Pela Revolução dos Cravos - feita por militares e
não pelo povo - surgiram várias figuras novas na cena pública, entre as quais a
de Mário Soares, combatente anti-fascista de toda a vida, sofredor de múltiplas
prisões e deportado para São Tomé e
exilado em Paris por alturas do 25 de Abril.
Nos conturbados anos
que se seguiram a 1974, este homem controverso, polémico, determinado e amante
da vida, lutou incessantemente pela construção do processo democrático e,
mostrando uma coragem invulgar, salvou Portugal no 25 de Novembro das garras do
comunismo soviético.
Amado por muitos e odiado por outros tantos - em especial por aqueles que lhe atribuíram a culpa de uma descolonização feita fora de tempo, após uma sangrenta guerra de treze anos – Mário Soares veio a ocupar legitimamente os mais altos cargos da nação e trabalhou incessantemente até ao final da sua longa vida. O seu prestígio internacional é bem testemunho deste facto.
Quando me detive por momentos junto do seu caixão em câmara ardente nos Jerónimos, no meu ecrã interior cruzaram-se, como rastros de estrelas, as palavras: liberdade, ousadia, coragem, tolerância, sinceridade, res portuguesa, alma, verdade, força interior, ponte entre mundos, espontaneidade, irreverência, arte, amor à vida...
Corriam-me as lágrimas e percebi finalmente porquê. Não importa quantas imperfeições e defeitos lhe possam apontar a nível da persona. A razão nunca poderá explicar a identidade a este nível subterrâneo, identidade que invariavelmente a tudo se sobrepõe, nas contas finais.
Amado por muitos e odiado por outros tantos - em especial por aqueles que lhe atribuíram a culpa de uma descolonização feita fora de tempo, após uma sangrenta guerra de treze anos – Mário Soares veio a ocupar legitimamente os mais altos cargos da nação e trabalhou incessantemente até ao final da sua longa vida. O seu prestígio internacional é bem testemunho deste facto.
Quando me detive por momentos junto do seu caixão em câmara ardente nos Jerónimos, no meu ecrã interior cruzaram-se, como rastros de estrelas, as palavras: liberdade, ousadia, coragem, tolerância, sinceridade, res portuguesa, alma, verdade, força interior, ponte entre mundos, espontaneidade, irreverência, arte, amor à vida...
Corriam-me as lágrimas e percebi finalmente porquê. Não importa quantas imperfeições e defeitos lhe possam apontar a nível da persona. A razão nunca poderá explicar a identidade a este nível subterrâneo, identidade que invariavelmente a tudo se sobrepõe, nas contas finais.
Gratidão, Mário Soares! Que o teu legado possa sobreviver aos dias áridos e destituídos de espiritualidade que hoje vivemos, pois não vejo no panorama mundial líderes equiparáveis ao ser extraordinário que foste, na amada Lusitânia e no mundo.
Temo que demorará muito a nascer, se é que nasce, um ser igual...
Magnífico!
ResponderEliminarObrigado, aproveito para completar, em grande e em em sentida eloquência, aquilo que também senti... e sinto (Y)
Muito grata, zéHelmer, pela sintonia-
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