Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos
SOPHIA DE MELO BREYNER ANDRESEN
Soava a tua voz como um murmúrio. Baixo e rouco, quase imperceptível. Ontem, a meio da tarde, o sol desproporcionado a inundar-te o quarto na casa onde se propõem devolver-te o andar, a vida frouxa. Soava pouco, a pouco, quase nada, no dia imperfeito que passava.
Não era tanto o que soava, mas o que algures velado pelas rugas, se desprendia a jorros do teu corpo débil, dos olhos mortos, tristes, rasos da água tépida que teimavas em segurar para que ninguém visse.
Tudo se desprende, o que resta preso por um fio, até a memória do que foi, os intermináveis dias de labor, as poucas alegrias, o sonho tão perseguido nunca chegado, o sonho de seres o que sabias ser sem o poder pois os muros altos, as incontornáveis barreiras da limitação agrediam-te ameaçadoras, sempre, cada dia uma luta, um persistir no impossível, frágil mulher toda feita coragem…
Defraudada, enfim, alguém te mentiu, “não mais, sem volta a dar” nunca figurara antes no teu léxico. Mas agora és cada vez mais a sombra do que sonhaste, escapa-se tudo, a acção certeira e competente, as plantas florescentes sob as mãos dotadas, as crianças continuidade tua - tão lindas e doces e de olhos claros como tu gostas- a casa da familia paredes objectos amados, memorias tantas em todos os cantos, dias muitos para trás de hoje. Tudo se esvai menos essa dor intensa, aguçada, pena mágoa desgosto de já não poder sonhar ser o que sabes ser sem o poder ser.
Agora já nada se sabe, tanto é dia como é noite, que importa, instalou-se uma fragilidade velhaca e traiçoeira no coração da vida, vida repetida sempre igual, sabor a nada, batas brancas, verdes, azuis, oxigénio, soro, ambulâncias, onde estou eu, meu Deus, para onde vou, será para breve ou ainda me resta alguma chance…
Emudeceste no terror da impotência, as mãos trémulas, artríticas, castigadas e ora inúteis, sentes, as mãos que beijo reverente na tarde absurda e ensolarada no mundo
onde “somos e passamos”, o mundo onde nos permitimos mutuamente e nos amámos, onde debaixo dos meus olhos doridos o fogo da velhice e da doença te queimam, aos poucos, no silêncio implacável do devir. E eu estou contigo, não porque o escolho, mas porque o sou, contigo, Mãe, com a tua lenda e a tua inconfessada Dor, a de não poderes sonhar mais ser o que sabes ser sem o poder…