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domingo, 10 de julho de 2016

FUTEBOL 2016 E A ILUSÃO ORGANIZADA




“O que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem
devo-o ao futebol...”
Albert Camus

“Não se pode esperar muito de pessoas que vivem de futebol,
carnaval e televisão.
Que se dirá de um país.”
Renilmar Fernandes

“O futebol é o ópio do povo e o narcotráfico da mídia.”
Millôr Fernandes


Agora que Portugal conseguiu a façanha de chegar à final do Euro 2016, vou tentar a difícil tarefa de escrever um pouco sobre futebol e o fenómeno sociocultural que ele representa.

Como muito outra boa gente, não deixo de ficar perplexa pela capacidade movimentadora e de polarização deste desporto. Apesar de não sentir qualquer atracção pelo futebol e as suas regras e logística me parecerem de uma simplicidade patética, é dificil não constatar  a importância e a função política e social que definitivamente adquiriu nas sociedades actuais. A minha abordagem será necessariamente exploratória, pois torna-se complexo, em especial para alguém como eu que desta prática nada entende, penetrar o âmago do fenómeno para além das suas aparências.

O futebol, desporto de todas as multidões, mimetiza o passo do mundo em que vivemos. Baseado na competição, como todos os jogos, o seu crescimento ocorreu exponencialmente durante o século XX, muito sob a acção da FIFA que o elevou à categoria de mercadoria  extraordinariamente bem sucedida na economia global. Hoje, servido por um marketing muito profissional e eficaz, movimenta milhões em todo o mundo e despoleta como nenhuma outra coisa um espírito de pertença ao colectivo, quer a nível patriótico, quer ao nível da gigantesca comunidade de adeptos do desporto em questão, bem implementado em todo o mundo.
A paixão que acompanha todo este processo é o que constitui para mim o grande mistério. Muitos factores contribuem seguramente para que o futebol tenha ascendido, para os adeptos, a uma categoria divina. Vivemos num mundo sem ideais, desencantados ante a falta de causas, em que o dinheiro ocupa o lugar outrora atribuído aos deuses. O ser humano é programado desde que chega a esta dimensão existencial para se comportar de forma a não obstaculizar o caminho e as opções dos seus controladores. Isto cria um vazio criador dentro de cada um, um deserto árido que urge povoar de alguma maneira. Por outro lado, será o futebol das poucas áreas em que o sonho do menino pobre com talento para a prática o pode levar à fama e à fortuna material num abrir e fechar de olhos e por via de uma curta carreira. Note-se que praticamente todos os grandes futebolistas são de origem humilde e com pouca ou nenhuma educação formal, mas cuja ascensão social e popularidade ficam em definitivo asseguradas pela capacidade de pontapear a bola de modo certeiro. Convém em absoluto aos medíocres e gananciosos governantes deste mundo e à sua matriz de controle, manter e mesmo exacerbar este estado de coisas, a qual transfere a atenção das pessoas dos verdadeiros e angustiantes problemas que nos assolam, adquirindo estes momentaneamente o estatuto de “fait divers” ante a atmosfera empolgante dos grandes espectáculos futebolísticos. Fica a dever-se ao efeito multiplicador dos media o crescimento exponencial de todos estes valores.
A FIFA, órgão máximo deste desporto, está minada por escândalos de fraude, extorsão e lavagem levados a cabo pela mafia que a dirige. Recentemente, em 2015, ocorreram várias prisões de altos executivos no Hotel Baur au Lac, em Zurique antes do início do 65º Congresso da FIFA, onde ocorreu a eleição para presidente da mesma. Outras prisões simultâneas tiveram lugar  em Miami e, mais tarde, na Austrália, Colômbia, Costa Rica, Alemanha e Suiça.  Emerge igualmente, à semelhança do que se passa um pouco por toda a parte, uma violência crescente e assassina no futebol. O que deveria ser um espaço e tempo apenas lúdicos, evolui cada vez mais para cenários sangrentos, muitas vezes até à morte. Nada mais triste do que a imagem de um adepto de cachecol ao pescoço, gritando histericamente “vitória”, cara pintada com as cores do clube que apoia, muitas vezes acompanhado da descendência na mesma figura, literalmente entregue, rendido, alienado, disposto a tudo, de coração grato pelo que lhe é dado sentir…

Vivemos num mundo decadente e o futebol, ao qual subjazem forças obscuras e gananciosas de manipulação e de controle, retrata-o na perfeição. Diria que neste inferno velado, os jogadores serão a parte mais inocente da organização.

Só a subida da consciência, a educação e o autoconhecimento, a recuperação de valores que nos ligam à transcendência e nos  conduzem a estados de alma libertadores de alienações e da ilusão organizada, poderá ter o efeito transformador desejável nesta situação.

Nada contra a prática do futebol, tudo contra o papel roubado que a sua prática assumiu na vida de uma esmagadora maioria.

2 comentários:

  1. O que exalta, para mim, deste espectacular movimento é a energia que está por detrás e o poder pessoal de cada indivíduo assim como todas as outras vitórias que Portugal está a atingir. Ora bem, a minha reflexão é mais sobre isso. As conquistas e o movimento que o futebol envolve pode ser usado em prol da economia e sucesso de todos os portugueses > é este o meu foco: será que não conseguem vislumbrar este fenómeno? Que o podem usar em seu beneficio desde os governantes até ao mais singelo popular? Somos TODOS UM, o que quer isto dizer? que somos indivíduos e somos ao mesmo tempo o TODO. Temos nas nossas mãos a mudança do que tanto desejamos. Cada vez mais vejo a mudança a acontecer, apesar de ser, ainda, uma minoria. No entanto, ela acontece por ser o desenvolvimento natural no Cosmos: evolução/crescimento.A emoção que sentiria - felicidade, alegria - pelos portugueses vislumbrarem que podem ter o mesmo sucesso para eles próprios e não só para os outros. Sawabona, Mariana!

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  2. Grata pelo seu comentário, minha amiga. Compreendo o seu ponto de vista, talvez mais terra a terra que o meu.
    Em mim subsiste sempre esta pena de ter de me render ao primitivismo em que a humanidade terrestre ainda se apresenta, com muitos aspectos involutivos actualmente.
    Sm, a mudança está a acontecer, mas de que forma?
    Repare como os impulsos cósmicos lançados para a Terra têm sido historicamente distorcidos pelos humanos e o chamado "avanço" tem-se feito aos trambolhões, com erros de palmatória e muito, muito sofrimento!
    Não é o futebol e a sua dinâmica que estão em causa para mim, é o significado transcendente que os movimentos dentro da prática deste desporto têm vindo a assumir para as populações em geral, tendo adquirido algo de sagrado para estas últimas.
    O que me entristece é que seja uma vitória futebolística o catalisador do espírito colectivo, por momentos em uníssono. O paradigma central está moribundo, minado de corrupções e desvios, todas as grandes causas traídas, a Inteligência Artificial a caminho do seu reinado sobre nós, a que sucessos, pequenos ou grandes, podemos aspirar dentro de uma estrutura obsoleta e apodrecida?
    Lamento, amiga Ana Guerra, mas esta é a minha percepção...
    Um abraço amigo

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