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sexta-feira, 23 de março de 2012

DOS BURRONORMÓTICOS


Vejo-o todos os dias. Mas, nos dois últimos, apareceu-me repetidamente, esse rosto cinzento e inflexível da Norma, a interpor-se insolente entre mim e a dor fininha e angustiante que é companheira certa da minha alma nestes dias de assistência  à minha Mãe idosa e doente.
Ela está a terminar o periodo da totalmente gorada reabilitação  motora a que tem sido submetida num centro privado a que a sua Caixa lhe dá direito. Mês e meio de dias penosos, em que nós os filhos a visitámos diariamente e a vimos fenecer cada vez mais, a memória desaparecida, tremuras a instalarem-se, olhos apagados, as pálpebras inflamadas do choro frequente que a abala, uma exaustão maior que a vida. Oro para que domingo chegue depressa pois vamos levá-la para minha casa no campo, onde tudo está preparado com desvelo para a receber e tentar emprestar suavidade e paz combinadas com o maior amor do mundo e cuidados infinitos àquilo que serão pela certa os últimos tempos da sua residência na Terra.
Antes de partir, houve que levá-la de ambulância (os especialistas médicos não se deslocam a lado nenhum hoje em dia) à consulta de cardiologia e a exames da especialidade. Logo no primeiro dos dias, tive de me pegar com a enfermeira do Centro que insistia que a minha frágil Mãe tinha de ir sentada na cadeira de rodas (a “amarrar” à trepidante ambulância) e se opunha às minhas instruções de que ela fosse deitada na maca para maior conforto. Isto deu lugar a uma troca azeda de palavras, em que ela brandiu a sua “superioridade de profissional de saúde” e eu a minha por “ser alguém pensante, que questiona a norma e que muito ama a Mãe”. Venci eu mas deixei o fedor do ressentimento atrás de mim. Ontem foi a vez dos electro e ecocardiogramas, arrancados à pesada agenda do médico pela sua boa vontade e profissionalismo, dada a urgência da situação. Final do dia para melhor se poder concentrar, disse ele, já sem outros doentes à espera.
Nova ambulância, em que a filha mais nova acompanha sempre a Mãe, seguindo eu atrás no meu carro.  Espera, a Mãe a torcer-se incomodada, carinhos para a distrair, o medico atento tão contente porque a Mãe saiu por momentos do estado apático e esboçou ao de leve um sorriso para ele, “Como está o senhor?”.
Terminámos tarde, confirmada a sentença de que “com esta patologia a senhora pode falecer a qualquer momento, é preciso estarem preparados”.
A ambulância com a Mãe e a mana  regressou logo ao Centro, enquanto eu aguardava que me dactilografassem o relatório final para em seguida ir procurar o meu carro mal estacionado numa das travessas empinadas sobre o Tejo nas imediações do Hospital da Cuf. Acelerei de volta ao Centro, erguido num descampado ali para Chelas, lugar sem alma, repositório de todas as fealdades suburbanas.
Gelou-se-me a alma quando vi a figurinha da minha irmã, apenas recortada na noite mal iluminada, encostada ao lado de fora do portão do Centro, todas as barras baixadas, fechado, cerrado a sete chaves. “Puseram-me fora às 20h 55, porque já eram praticamente 21h 00 e o Centro fecha a essa hora.”
Protestou, protestou, uma mulher não podia ficar na rua, a irmã estava quase a chegar, só mais uns minutos. Nada demoveu a eficientemente normótica auxiliar de limpeza, naquele instante glorioso de poder total. Decisão confirmada pela recepcionista, sempre de rosto azedo e impróprio para quem atende num Centro de idosos. Fora, fora do Centro, fora do recinto, dos portôes, têm de ser fechadas todas as grades, a norma dita, a norma exige que às 21h00, nem mais um segundo e haja o que houver, são fechadas todas as entradas e saídas e ninguém mais entra ou sai. A mana deixou-se expulsar, esgotada do dia angustiante, assustada por estar sózinha a um portão naquele descampado, em tempos turbulentos como os que vivemos.
Pergunto-me: se os exames tivessem demorado um pouco mais e a ambulância tivesse regressado apenas às 21h01, a Mãe não teria podido entrar? Teria pernoitado na ambulância, sem a sua imprescindível medicação ? Teria falecido em consequência do mesmo? Dentro da ambulância?
Ah, já me esquecia! E se as normas da ambulância obrigassem a “despejar” a nossa Mãe ali mesmo, pois ninguém pode ficar dentro do veículo após a chegada ao seu destino anunciado?

Burros! Burronormóticos que nada sabem de si mesmos, muito menos dos outros, produtos aberrantes de uma sociedade decadente, a destruturar-se, enrolada no criminoso olvido de que é formada por pessoas feitas para sentir e pensar, para questionar e interpretar leis, normas, princípios e os instrumentos vários reguladores do folclore humano à face do planeta.
Assim vai a vida…

2 comentários:

  1. Pois é Mariana...olhando a vida como está funcionando só podemos concluir que a humanidade é morta...ou robótica...o que preferir. E tem mais... foi dito por um Mestre: em país de miseráveis os não miseráveis serão crucificados!
    Ontem também usei esta imagem no post que fiz no meu blog...vamos ser e irradiar amor...é só mesmo isso que nos cabe...
    Lamento por sua Mãe...um beijinho doce.
    Astrid Annabelle

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  2. Obrigado, minha querida. O estado da humanidade só nos poderá é incentivar cada vez mais na prossecução activa dos valores do Espírito.
    Um beijo afectuoso
    Mariana

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